Ainda no ensino fundamental todos nós aprendemos que o coração
se encontra no centro do tórax, mas a ponta fica desviada para a esquerda.
No primeiro ano da Faculdade dissecamos cadáveres todos os dias durante
o dia todo. Portanto, a posição das vísceras se torna mais
conhecida do que barulho de penico. Numa incerta manhã de sábado
de um incerto ano da década de 1980, fui requisitado por um colega para
ajudá-lo numa operação de apêndice. Quando não
há complicação - como parecia ser aquele, o caso - esta
intervenção não dura mais do que trinta minutos. "Escutem,
vou auxiliar uma cirurgia, mas vocês podem ir se preparando que dentro
de uma hora ou hora e meia, no máximo, estarei de volta pra gente ir
à praia". Ficou todo mundo já de maiô. Esperando.
Eram cerca de oito da manhã. Incisão mínima do lado direito
do pé da barriga. Pegou-se um segmento do intestino grosso. Normalmente
o apêndice saltaria logo pra fora como se gritasse: "Estou aqui;
não machuquem demais o meu pai, não. Pelo amor de Deus".
(O pai dele era o Ceco, claro.) Mas este parecia ser um apêndice covarde.
Nada de o miserável dar o ar da graça. Tocamos a procurar. Nesta
primeira investida se passaram quase duas horas. Nada! Aumenta o tamanho do
talho. Puxa mais tripa gaiteira pra fora. Procura, procura: mais uma hora de
minuciosa busca. Nada!
Aumenta mais o tamanho da ferida. Fez-se outro talho de vinte centímetros
começando debaixo da "costela mindim" e emendando com o outro
buraco por onde se começou. Mais uma hora. E nada! Deu dez, onze horas
da manhã, meio dia. E nada do desgraçado do apêndice. O
anestesista começou a ficar impaciente: "Vamos acabar logo com isto.
Se não se encontra apêndice é porque nunca existiu ou já
foi retirado". A coisa já estava ficando extremamente irritante.
Todo mundo com os nervos à flor da pele. Então, um "espírito"
me soprou no ouvido: "faz uma ausculta cardíaca". E eu passei
para o anestesista: "faz uma ausculta cardíaca".
Pois é, já fazia mais de quinze anos que tinha me formado. Com
outros seis de estudante somados, eram vinte e um. Durante todo este tempo nunca
deixei de dissecar cadáveres ou de operar. Mas esta "inversão
de panelada" foi a primeira vez que vi na vida. O "cara" (ou
a "cara", já nem lembro mais, mesmo porque não era meu
/ minha cliente) tinha os "bofes" todos trocados: Coração
para a direita, fígado pra esquerda. Passarinha pra direita, cólon
ascendente pra esquerda. Pulmão direito na ponta esquerda, pulmão
esquerdo na ponta direita. Baço capitalista, apêndice comunista.
Só depois de abrir do outro lado, o miserável pôde ser encontrado.
Quando terminamos tudo - inclusive de costurar os rasgões inúteis
- já havia mais de quatro horas e meia de operação. A "praia"
daquele dia foi no fundo duma rede.