Até hoje ainda não apareceu em carne e osso. Mas na minha aldeia
ninguém duvidava da sua existência. Porque a maioria dos homens
seria capaz de jurar sobre a Bíblia como já havia deparado várias
vezes com ela durante as madrugadas dos longínquos anos cinqüenta
do século passado. Quando a simples escapadela de uma jovem junto com
o namorado para algum lugar fora do controle dos pais, era considerada rapto,
desonra e desmoralização, que só poderiam ser redimidos
através de um único recurso: o casamento no padre e no juiz.
De acordo com testemunhas "insuspeitas" ela já fora avistada,
sempre com uma mantilha a lhe encobrir o rosto, atravessando ruas escuras, se
escondendo por detrás de tapumes, entrando em casas de homens solteiros,
caminhando sobre os trilhos da ferrovia, subindo e descendo morros, correndo
pelos gramados de futebol, atravessando pontilhões, deitada em bancos
de jardins de praças públicas, subindo em árvores e até
pairando sobre as águas do rio.
Diziam abertamente tratar-se de uma mulher casada em busca de aventuras extraconjugais,
quando o marido não estava em casa, pois o trabalho exigia viagens freqüentes
e prolongadas. Havia alguns notívagos que a descreviam com riqueza de
detalhes dignos de um quadro de Juan Miró, de um Rembrandt, de um Tintoretto
ou de um El Greco. Estou sendo injusto para com os meus concidadãos.
Eles a descreviam com muito mais realismo, pois citavam pormenores específicos
e tridimensionais da sua imagem como os que se vêem na "Vitória
de Samotácia", por exemplo. Que digo? Assim estaria exaltando o
requinte, o bom gosto e a tolerância daqueles homens. Eles a descreviam
antes como se estivessem falando do "Sarcófago de Petosiris".
Aquela múmia que se encontra na sala 49 do Museu do Cairo. Apesar de
nunca ninguém tê-la avistado à luz do dia. Portanto, não
se duvidava da sua existência e até se chegava a fazer suposições
levianas acerca da real identidade.
A Mulher do Rabão era, por conseguinte, um arquétipo, esboçado
em cada uma das minhas conterrâneas, da dominação masculina.
Ou seja, como jamais foi identificada, ela representava todas. Também
estava simbolicamente para os homens da minha aldeia, como Joana d'Arc, para
os juízes do Tribunal do Santo Ofício; Maria Madalena, para os
judeus; Amine, para os nigerianos. Enfim, como todas as mulheres "suspeitas
de desonra" estavam para o mundo ocidental até, mais ou menos, a
década de 1960. E ainda continuam estando, até agora, para outras
longitudes.
A Mulher do Rabão era uma figura emblemática da "inferioridade"
feminina. Símbolo da educação medieval impingida pelas
famílias burguesas às suas mulheres. E dos supostos motivos para
serem consideradas cidadãs de segunda classe. Enfim, do preconceito machista
e da milenar hegemonia patriarcal.
Apesar dos meus oito ou nove anos me lembro muito bem. E confesso que, naquela
época, a minha inocência de criança me levava a acreditar
piamente na existência da Mulher do Rabão. Mas juro por Deus como
ignorava o propósito lúbrico atribuído às suas imaginárias
aventuras madrugadoras. Acreditava sinceramente que a intenção
era apenas a de assustar as pessoas. Somente depois de homem feito, vim me aperceber
da natureza lasciva que associavam ao comportamento daquela suposta fantasmagoria
caipira. Isto pode significar duas coisas: que a ingenuidade sempre foi um traço
do meu caráter, e que meu preconceito machista não era tão
grande quanto o dos outros homens da minha geração.