A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A Mulher do Rabão

(Raymundo Silveira)

Até hoje ainda não apareceu em carne e osso. Mas na minha aldeia ninguém duvidava da sua existência. Porque a maioria dos homens seria capaz de jurar sobre a Bíblia como já havia deparado várias vezes com ela durante as madrugadas dos longínquos anos cinqüenta do século passado. Quando a simples escapadela de uma jovem junto com o namorado para algum lugar fora do controle dos pais, era considerada rapto, desonra e desmoralização, que só poderiam ser redimidos através de um único recurso: o casamento no padre e no juiz.

De acordo com testemunhas "insuspeitas" ela já fora avistada, sempre com uma mantilha a lhe encobrir o rosto, atravessando ruas escuras, se escondendo por detrás de tapumes, entrando em casas de homens solteiros, caminhando sobre os trilhos da ferrovia, subindo e descendo morros, correndo pelos gramados de futebol, atravessando pontilhões, deitada em bancos de jardins de praças públicas, subindo em árvores e até pairando sobre as águas do rio.

Diziam abertamente tratar-se de uma mulher casada em busca de aventuras extraconjugais, quando o marido não estava em casa, pois o trabalho exigia viagens freqüentes e prolongadas. Havia alguns notívagos que a descreviam com riqueza de detalhes dignos de um quadro de Juan Miró, de um Rembrandt, de um Tintoretto ou de um El Greco. Estou sendo injusto para com os meus concidadãos. Eles a descreviam com muito mais realismo, pois citavam pormenores específicos e tridimensionais da sua imagem como os que se vêem na "Vitória de Samotácia", por exemplo. Que digo? Assim estaria exaltando o requinte, o bom gosto e a tolerância daqueles homens. Eles a descreviam antes como se estivessem falando do "Sarcófago de Petosiris". Aquela múmia que se encontra na sala 49 do Museu do Cairo. Apesar de nunca ninguém tê-la avistado à luz do dia. Portanto, não se duvidava da sua existência e até se chegava a fazer suposições levianas acerca da real identidade.

A Mulher do Rabão era, por conseguinte, um arquétipo, esboçado em cada uma das minhas conterrâneas, da dominação masculina. Ou seja, como jamais foi identificada, ela representava todas. Também estava simbolicamente para os homens da minha aldeia, como Joana d'Arc, para os juízes do Tribunal do Santo Ofício; Maria Madalena, para os judeus; Amine, para os nigerianos. Enfim, como todas as mulheres "suspeitas de desonra" estavam para o mundo ocidental até, mais ou menos, a década de 1960. E ainda continuam estando, até agora, para outras longitudes.

A Mulher do Rabão era uma figura emblemática da "inferioridade" feminina. Símbolo da educação medieval impingida pelas famílias burguesas às suas mulheres. E dos supostos motivos para serem consideradas cidadãs de segunda classe. Enfim, do preconceito machista e da milenar hegemonia patriarcal.

Apesar dos meus oito ou nove anos me lembro muito bem. E confesso que, naquela época, a minha inocência de criança me levava a acreditar piamente na existência da Mulher do Rabão. Mas juro por Deus como ignorava o propósito lúbrico atribuído às suas imaginárias aventuras madrugadoras. Acreditava sinceramente que a intenção era apenas a de assustar as pessoas. Somente depois de homem feito, vim me aperceber da natureza lasciva que associavam ao comportamento daquela suposta fantasmagoria caipira. Isto pode significar duas coisas: que a ingenuidade sempre foi um traço do meu caráter, e que meu preconceito machista não era tão grande quanto o dos outros homens da minha geração.

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