A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Para Onde Vai tanta gente?

(Raymundo Silveira)

Certa ocasião se hospedou no meu apartamento, aqui na cidade grande, um tio que, apesar dos seus setenta e poucos anos, nunca havia deixado a aldeia natal. Todos os dias quando me levantava já o encontrava devidamente banhado, penteado, escovado e, invariavelmente, sentado à janela. Fitava aquele desfile de automóveis aos seus pés, como se fosse "a fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada de dentro da sua cabeça". Parecia uma estátua: não se mexia. Nem falava absolutamente nada.

Quando chegava do trabalho ainda o encontrava na mesma posição. O único interesse além daquele, era ir ao banheiro. A princípio não julguei conveniente interferir, mas num incerto dia a curiosidade superou a discrição: "Tio, o que o atrai tanto nessa janela?" "Meu filho, há muito tempo tinha vontade de lhe perguntar uma coisa, mas sentia muita cerimônia. Agora que você perguntou primeiro me responda, por favor: pra onde vai tanta gente?" Não consegui conter o riso. Mas disfarcei para não constrangê-lo. À noite, quando já estava deitado e tentava conciliar o sono, passei a meditar sobre aquela indagação aparentemente ingênua.

Fiquei a imaginar o que se passaria nas cabeças daquelas pessoas. Quantas se sentiriam felizes? Nenhuma, por certo! Do contrário não sairiam em busca de coisa alguma. Quantas estariam serenas? Pouquíssimas; talvez uma em mil, se tanto. Do contrário não buzinariam como loucas. Ademais, não creio ser possível alguém se sentir sereno em meio àquele trânsito caótico. Quantas estariam na expectativa de alcançar algo para melhorar as condições existenciais? Todas, certamente.
Contudo, mesmo aquelas rar
íssimas que eventualmente lograssem êxito, pouco tempo depois também se frustrariam, pois descobririam: nada daquilo fez diferença. Tais qual uma criança quando recebe um brinquedo pelo Natal ou pelo aniversário. O primeiro impacto é uma incrível ventura. Parece terem sido atingidos todos os ideais. Pouco mais tarde descobrirão a inutilidade de tudo. Algumas chegarão mesmo a cogitar: "como fui ingênuo por anelar a tão insignificante projeto!". Nada disto, porém, impede que aquele ideal frustrado seja imediatamente substituído por outro, e depois por outro mais e mais outro. E assim sucessivamente, porque aqueles pequenos objetivos e as suas respectivas frustrações ficaram para trás.

Só então encontrei a resposta mais adequada. Aquela que deveria ter dado ao meu tio quando perguntou: "Meu filho, pra onde vai tanta gente?" "Sabe tio, essa gente vai para todos os lugares. E para nenhum!"

Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente