A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A Usina Tá Fumaçando?

(Raymundo Silveira)

Durante a década de 1950 já existia energia elétrica na minha aldeia. E este fenômeno a incluía no fechadíssimo clube daquelas que tinham luz à noite, embora a sua duração fosse de, no máximo, duzentos e quarenta minutos e dependesse estritamente do humor da casa de orça. Pressentia-se o bom humor, quatro horas antes. Era sinalizado pela emanação de uma pequena nuvem de fumaça advinda de lá. E era possível ver de, praticamente, todos os locais.

Este "praticamente" não abrangia a Rua do Tamanduá, onde eu morava. Então, os moradores tinham de se deslocar, a partir das quatro da tarde, para o patamar da igreja matriz - um mirante privilegiado - para confirmar ou infirmar a vigência da tal fumaça, caso quisessem saber se à noite brilharia a luz. Havia duas torcidas: a da maioria absoluta, que ansiava por usufruir os benefícios do invento de Thomas Edson, e a outra. Muito menor, pois se tratava de casais de namorados. Estes faziam questão de não gozar esse privilégio porque preferiam outra modalidade de gozo. Eu mudava mais de partido do que político brasileiro depois das eleições.

É curioso como passei a associar todas as expectativas da minha vida a um alegórico "fumaçar de usina". Quantas vezes ansiei por este fumegar enquanto esperava, por exemplo, a chegada de um bom livro, através do reembolso postal. Os resultados das notas escolares. As festas folclóricas e religiosas. A exibição de filmes de caubói. Os encontros com a namorada. A estréia de uma roupa nova. As cartas e os telegramas alvissareiros. As mesadas. As manhãs de domingo, quando chovia. As tardes de domingo, quando havia partidas de futebol. As noites de domingo, quando não chovia. Os aniversários. Os Natais e as passagens de ano. Os banhos de rio durante as Semanas Santas. Os acanhados carnavais. E, principalmente, a chegada dos meus quinze anos. Pois achava que a partir daquela idade eu seria mais homem, mais independente, mais respeitado, mais feliz.

Depois, quando vim morar na cidade grande, continuei "indo sempre para o patamar da igreja para ver se a usina estava fumaçando". Na maioria das vezes não estava. Mas que rolos espessos de fumaça ela emitiu enquanto estive apaixonado e fui correspondido. Quando passei no vestibular. Quando me matriculei numa faculdade de medicina. Quando rasparam a minha cabeça à guisa de trote. Quando sabia que tinha sido aprovado para o ano seguinte. Quando entrei - através de concurso público - para o Internato do Pronto Socorro. E, sobretudo, durante as horas que antecederam a noite de vinte de Dezembro de 1970, quando o Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Do Ceará pôs um barrete sobre a minha cabeça. E usando as prerrogativas que lhe facultava a lei, pronunciou estas palavras: "Tu és médico!" Como a usina fumaçou naquela tarde!

A partir daí, minha usina funcionou cada vez mais raramente, porém o que minguava em freqüência, crescia em intensidade. Assim, ela emitiu muito fumo ao concluir o curso de pós-graduação. Ao me tornar professor universitário e diretor de uma escola superior, estando apenas com vinte e oito anos de idade. Ao partir para a primeira viagem à Europa. Mas nunca fumaçou tanto quanto nos dias em que nasceram as minhas três filhas. Contudo, houve também longos períodos em que funcionava como vaga-lumes. Ou permanecia completamente apagada. Hoje, a usina ainda fumega. Mas tão raramente... Entretanto, nunca deixo de ir todas as tardes procurar saber disso nos patamares das igrejas das minhas parcas esperanças.

(28/04/2004)

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