A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Os Escritores Bregas da Internet

(Raymundo Silveira)

Estava eu posto em sossego, digo melhor, em desassossego, porque queria escrevinhar e não sabia sobre o quê, quando me deparei conversando sozinho, como sói acontecer, e escutei-me dizendo pra mim mesmo: "cara, por que tu não escreve sobre os autores bregas da Internet?". Imediatamente, retruquei: "tá ficando doido, é?" "Não. Se eu tiver tu tá também, porque tu é eu e eu...". Tá bom, mas de onde tu tiraste essa idéia?". "Ora, nós não estávamos escutando o Nelson Gonçalves, o Altemar Dutra, o...". "Sim. E o que é que tem a manga do paletó a ver com o cotovelo?". "Será possível, que ainda não percebeste? São cantores bregas e...". "E o quidiabé exatamente brega?". "Bom, agora digo mais não. Se quiser saber taqui um dicionário..."

Tava lá: "1 - que ou quem não tem finura de maneiras; cafona. 2 - de mau gosto, sem refinamento, segundo o ponto de vista de quem julga. 3 - de qualidade reles, inferior." "Rapaz... Quer me meter em boca quente?" "Boca quente? Tá pensando o quê? Nós somos breguíssimos. Só que tu ainda não te deu conta disso. Se quisermos escrever sobre escritores bregas da Internet, não precisas falar de ninguém, a não ser de ti... Quer dizer, de nós mesmos". "Quer dizer que me / nos tem na conta de tudo aquilo que diz o dicionário?" "Ra, ra, ra... Se fosse só eu, tudo bem. Lê o que a gente escreve, cara..."

Fiquei puto comigo mesmo e comecei a pensar. Quanto mais pensava, mais ficava puto. E num vi onde estava esta breguice. "Esquece, esquece...". "Não! Agora vais ter de me dizer..."

"Bem, vou dizer, então. Como eu sou tu, espero que não fique magoado comigo e...". "Deixa de conversa fiada e conta logo tudo, rapaz. Se não...". "Tá bom; vamos lá. Essa tua mania de contar histórias com começo, meio e fim. Isso num pega bem. Temos que ser herméticos. Não dar de bandeja. Do contrário fica igual às novelas da TV. Não estimula o leitor a pensar. Num vê aquela tua amiga dizer que "o excesso de informações estraga o texto?". Não pode ser assim. Tens que ser enigmático; metafórico. Quem quiser que adivinhe. Ademais, deves ser também mais poético... Criar frases de efeito... Sentenças que impressionem o leitor. Tá na moda...." "Cara, me diz uma coisa: tu já leu o Rubem Fonseca?" "Já". "Então tu sabe que com ele não tem essas frescuras. Mata, mata, mata... Estupra, tortura o diabo e recebeu o Prêmio Camões". "Tu quer te comparar logo com o Rubem Fonseca, cara? Ele pode fazer isso. Tu... Nós, não".

"Outra mania tua: essa frescura de escrevinhar comentando e elogiando os escritos dos outros. Isto pega mal pra caramba. Onde foi que já viste alguém enaltecer os concorrentes?" "Não os considero concorrentes. Faço o que sinto ser o meu dever. Procuro destacar os valores dos outros autores. Do contrário a mediocridade, os bregas, como tu chamas, é que irão se sobressair." "Tu é muito babaca... Nunca pensei que chegasses a tanto. Tu te lembra daquele texto que nós escrevemos?" "Qual deles? Pelo que eu saiba já escrevi mais de mil e quinhentos." "Aquele conto do cego, desmemoriado...." "E o quéquitem a história do cego?" "Porra, tu escreve as coisas e parece que não lê. Vê aqui".
"- Passo os dias aqui cumprindo uma promessa. Não tive mãe. Não tive irmãs. Não tive filhas. Pra falar a verdade, nunca tive mulheres de espécie alguma na minha vida. Minha avó foi martirizada justo por ser mulher. E eu prometi que a veria em cada uma que encontrasse. Então, todas que passam, reconheço pelo cheiro. Desde uma menina de colo a uma anciã. E presto uma homenagem. São homenagens simples... Mas eu me empenho em prestá-las e me considero feliz. Para algumas faço uma prece. Para outras digo palavras delicadas e gentis. Ainda que não escutem. Em suma, impus a mim mesmo essa missão... E vivo bem assim".

"Tá me comparando com esse cego idiota?" "É tu... Somos nós. Sem tirar nem pôr. Mas vou te dar uma colher de chá: O diabo é que nós gostamos de ser lidos. E pelos indicadores disponíveis, que até prova em contrário são os e-mails que nos enviam e o número de saites que nos publicam, os internautas adoram uma breguice. Fazer o quê, né mermo?"

(02/04/2004)

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