A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Calaboquem! Vai-se Cantar O Fado!

(Raymundo Silveira)

Acabo de chegar de um restaurante brasileiro onde se executavam músicas portuguesas e acrescento logo de princípio que, embora goste muito de samba, adoro o fado. Como me considero também um exímio conhecedor de sotaques, não apenas entre os dos falares de Portugal e do Brasil, mas também entre os do norte e do sul do meu próprio estado - o Ceará -, não tive dúvidas de que o cantante era português e chamei o garçom para conferir. "Não senhor, ele é daqui mesmo", disse sem muita convicção. Como estivesse com preguiça, de barriga cheia ou desmotivado (ou as três coisas juntas), resolvi não ir tirar a prova junto ao próprio cantor, mas continuo achando que aquele sotaque é não apenas português, como enfeitado com a mais fresca alfacinha, isto é, português legítimo de Lisboa. Cantou todos os fados famosíssimos de Amália, de Francisco José de Carlos do Carmo. Para escutar quase duas horas de música lusitana, paguei um mísero couvert correspondente a menos de um Euro. Com direito a conversar.

Quem nunca foi a Lisboa jamais vai entender o final do parágrafo anterior, ou seja, com direito a conversar. Atenção, muita atenção senhoras e senhores que sonham em cruzar o Atlântico para ir escutar o fado em Lisboa. Este conselho que irei lhes dar não se restringe apenas às casas mais famosas como "A Severa", o "Timpanas", "O Faia" ou a "Adega do Machado" - que são os que mais freqüento; é válido também para qualquer birosca onde soam banjos, bandolins e vozes que às vezes mais parecem um choro angustiante de alguém desesperado: é terminantemente proibido conversar, falar, murmurar, ciciar, rumorejar, tossir, espirrar e até suspirar um pouco mais alto, enquanto se canta o fado. Sei que muita gente não vai acreditar, mas assim como aqui no Brasil existem casas noturnas que contratam seguranças, também conhecidos como leões de chácara, para dar um sossega leão nalgum bêbado chato ou valente, assim também em Portugal são contratados calabocadores a fim de calabocarem brasileiros que, dentro de uma Casa de Fados, se comportam como se estivessem... Pensei em falar num "mercado central", mas estaria sendo pouco preciso; como se estivessem em qualquer lugar daqui, inclusive em igrejas ou cemitérios.

E eles calabocam mesmo! E ai daqueles que se recusarem a calabocar. A minha primeira vez foi no "Timpanas". Na nossa mesa só havia seis brasileiros, mas a "<b>al gazarra</b>" (que deve ser uma palavra de origem mourisca) foi tanta, que tiveram de vir seis calabocadores, um para calabocar cada um de nós. Por algazarra entendam um papo normal, baixinho, quase como se estivéssemos a rezar o terço em família.

Numa certa noite, já estando com o estômago e a cuca servindo devidamente de vasilhames para muito "Dão Vasco", entendi de levar a minha filmadora para o "Timpanas". Disse para a minha mulher: vou levar só por levar (levar só por levar é bom demais), mas tenho certeza que não vão me permitir filmar nem a calçada. Talvez nem me deixem entrar. "Por quê?" "Ora, por quê. Se lá dentro é proibido até fazer ram ram quando se tem a garganta inflamada, imagine filmar". Pois me enganei redondamente. "Podes filmar até as calcinhas das mulheres que estiverem a dar brechas, mas se respirares um pouco mais fundo enquanto se vai a cantar o fado, nossos calabocadores apreenderão a tua câmara".

Este tema ainda renderia umas boas dúzias de páginas de Word, pois não é somente em casas de fado onde os portugueses e europeus, de um modo geral, se assustam com o alarido que os brasileiros costumam fazer em qualquer local, quando viajam por terras de Oropa França e Bahia. Não tenho certeza aonde li - parece-me que foi em Casa Grande & Senzala - que este costume existiria desde os tempos mais remotos do Brasil colônia, quando as mocinhas, os mocinhos e outros não mais assim tão moços, passavam o dia a gritar pelas escravas a fim de lhes servir um copo de água, pedir uma peça de vestuário ou até para lhes calçar os sapatos ou coçar os pés... Ou, quem sabe, outras partes mais adjacentes ao equador do corpo.

(09/04/2004)

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