A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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A terceira coisa mais indispensável na vida

(Raymundo Silveira)

Cronista arranja cada tema! Vejam em que fui pensar quando sentei a este computador para escrever e ainda não sabia sobre o quê! Excetuando o Ar e os Alimentos, qual seria a terceira coisa concreta sem a qual não sobreviveria? Uma prosaica caneta esferográfica ou outro material que cumprisse uma função semelhante.

O mais surpreendente é que as recebo diariamente de graça e às dezenas, mas costumam faltar nos momentos em que mais necessito. Vamos imaginar a vida sem uma caneta. Às vezes fico na iminência de entrar em desespero por causa da falta de uma delas, creiam. Tenho um hábito, que achava ser exclusivamente meu. Agora sei que não é: Só conseguir usar o vaso sanitário, lendo ou escrevendo.

É uma dependência mórbida pior do que a de heroína, pois a carência, do objeto do meu vício, além da síndrome de abstinência própria daquela droga, causa vários outros efeitos colaterais. Inclusive o de impedir que seja cumprida a função pretendida quando decidi sentar ali.

Às vezes estou lá, lendo tranqüilamente, quando surge a necessidade imperiosa de anotar alguma coisa. Entro, literalmente, em pânico! Tratando-se de algo que precise ser assinalado no próprio texto, passo a unha, mordo, cuspo, rasgo, molho. O máximo que consigo é danificar a palavra ou a frase impressa. Quando não acontece o mesmo com o próprio exemplar do livro, da revista, ou da folha de papel onde acabei de imprimir um trabalho escrito por mim mesmo.

Você já esteve na fila de um Banco, repleta de gente estressada, e precisou de uma caneta para preencher um cheque, ou uma guia de depósito? Há semblantes tão patibulares que não me atrevo a pedir uma emprestada. Espero que o caixa me faça este favor ou saio da fila para apanhar uma com algum funcionário. Com a maior preocupação de que não me deixem mais retornar para o mesmo lugar.

Em Junho de 1989, faltavam pouco mais de seis meses para o Color tomar posse (e a poupança do povo), quando tive uma premonição. Balancei as cumbucas, raspei o que havia de dinheiro e abalei pra Europa viajando de primeira classe por uma sofisticada companhia aérea inglesa.

Só costumo viajar trajando jeans e calçado de tênis. Pois me assentaram vizinho a um lorde inglês, parecido com aquele proprietário rural que aparece no filme "Vestígios do Dia". Somente uma das mangas do paletó do nobre britânico deveria ter custado mais do que toda a minha bagagem. O gringo parecia achar que ao lado dele, jazia uma mochila hippie ou a de um jeca. Não uma pessoa. Não se dignava a me olhar nem de soslaio. Fiquei na minha, claro. Quando estávamos prestes a aterrissar no aeroporto de Heatrhow, a tripulação distribuiu aquelas papeletinhas para serem preenchidas sob pena de não ser permitido o desembarque.

Procurei uma caneta nos bolsos e na minha bagagem de mão como um asmático que busca o ar. Nada! Estaria disposto a pagar por uma, o preço que não paguei pela garrafa de uísque do free-shop de bordo. Quase arrebatei das mãos da comissária, tamanha era a sede. Mas não comprei. Só pra economizar.

Para resumir, tratava-se de uma urgência urgentíssima. "Do You have a pen, Sir". Consegui balbuciar como se estivesse pedindo um vultoso empréstimo a um gerente do Bradesco. Onde evito até passar pela calçada. Noutra oportunidade contarei por quê.

Pois bem, o súdito da Elizabeth esboçou um leve sorriso, mas, que alívio, me emprestou a caneta. Agradeci. Para não dizer que não falou nada, quando a aeronave parou no pátio de estacionamento arrisquei: quem sabe agora. "We've just arrived, sir" e obtive esta resposta: "Yes. We've arrived" E só! Foram as únicas palavras que o ouvi pronunciar em dez horas de "harmonioso convívio".

Estes são apenas três episódios concretos sobre a falta que faz uma caneta. O que mais causa estranheza é que isto só acontece quando preciso. Tenho agora mesmo aqui na gaveta da minha escrivaninha (esperem, deixem-me contar): apenas na primeira gaveta, oito canetas. E mais uma dúzia na sua vizinha de baixo. Não estou carecendo agora de nenhuma. Mas enquanto escrevia este texto tive necessidade de ir ao banheiro e levei parte dele impresso para fazer algumas emendas. Claro que não poderia esquecer de levar uma delas. Juro que estou falando a verdade: precisamente naquela que levei, não havia mais uma única molécula de tinta.

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