Dizem os andaluzes que ao visitar Sevilha pela primeira vez durante uma Semana
Santa, deve o viandante esquecer tudo o que já leu e ouviu sobre ela, porque
nada pode ser comparado com o que acontece de verdade quando se deixa seduzir
pela cidade através dos próprios sentidos e quando se respira a
sua atmosfera saturada de uma mistura de ar e de incenso - um incenso, único,
sutil, diferente, exótico. Alguns chegam a exagerar e dizem que visitar
Sevilha durante uma Semana Santa é como chegar às portas do Paraíso.
Quando chovia bastante na minha pequena aldeia durante as Semanas Santas das décadas
de 1960 e 1970, se alguém me propusesse renunciar a ir para lá a
fim viajar para Sevilha com todas as despesas custeadas pelo governo espanhol
(não me perguntem por que ele faria isto porque não sei) para que
eu "esquecesse o que já li e ouvi" sobre aquela apoteose
e ir assistir a tudo ao vivo e a cores; a vinhos e a licores, não hesitaria
um só instante em recusar.
É possível que estar em Sevilha durante uma Semana Santa seja a
mesma coisa de se sentir às portas do Paraíso; todavia, estar na
minha aldeia durante uma Semana Santa de um dos anos daquelas décadas,
com os riachos transbordando, os açudes sangrando a fauna cantando e a
flora sorrindo, era como estar no próprio Paraíso e se sentir eterno.
A cerca de dois quilômetros do centro da vila existia um cruzeiro de madeira
que sempre foi, e até hoje ainda é, uma espécie de marco
assinalando onde o mundo termina e ela começa. A partir daí não
se percebia nenhum odor de incenso - nem comum, nem diferente, nem exótico,
porém passava-se a inalar uma atmosfera impregnada da própria vida
e era constituída dos vapores da seiva, do cheiro da terra molhada, das
águas correntes do rio, do perfume dos aguapés, e de uma emanação
indefinida de infância; diria que a gente sentia um misterioso
cheiro de natureza.
Ao entrar na casa dos meus pais já podia experimentar também, muito
antes de comer, o sabor do bacalhau sendo cozido para depois ser desfiado, condimentado
com especiarias da terra e do reino e encharcado de azeite. Poucos traços
que restaram dos costumes que os nossos avós trouxeram de Portugal permaneceram
tão arraigados entre nós quanto esta tradição que
é o consumo do bacalhau. Na minha casa, os modos de prepará-lo variavam
quase tanto quanto os da Península, mas o da minha predileção,
duvido que alguém conheça, inclusive lá, pois fui eu mesmo
que inventei. Viu dona Maria Petronilho? Poderia ter dado à iguaria o meu
próprio nome, como fez Gomes de Sá, mas preferi chamá-lo
de cuscuz de bacalhau, pois era de fato preparado como se um
cuscuz comum fora ser cozinhado; só que em vez de massa de milho, atochava-se
numa cuscuzeira camadas sucessivas de pedaços pequenos de bacalhau temperado
com muito alho e outros condimentos tais como cheiro verde e coentro, intercalando
cada uma delas com outras de queijo de coalho, cebolas e azeitonas, de modo a
formar uma espécie de rocambole em forma de cone recheado que, ao ser retirado
da fôrma, tomava o aspecto de um bolo de noiva do qual retirávamos
fatias enormes, púnhamos num prato, regávamos com mais azeite, até
ficar parecendo uma pequena inundação, e então devorávamos
tudo junto com goladas de vinho branco.
Outros pratos típicos da minha aldeia numa Semana Santa molhada
eram o feijão verde com nata, o milho também verde cozido ou assado,
a pamonha e a canjica. Outra grande atração eram os chamados banhos
no rio, ou banhos de rio, um eufemismo para passar o dia inteiro
enchendo a cara de cachaça, mergulhados em água pela cintura ou
até mesmo pelo pescoço . Destes não posso falar
muita coisa por razões óbvias, digo melhor, etílicas. Mas
imaginem aqueles festins medievais com vomitórios nos fundos da sala dos
banquetes, semelhantes àquele que El Greco reproduziu numa tela que se
encontra no Museu do Prado e mostra os personagens se embriagando e vomitando
para tornarem a se embriagar e vomitar, per omnia secula seculorum;
só assim terão uma idéia aproximada dos tais banhos
de rio da minha aldeia em plena sexta-feira da Paixão. Mas vou
parar por aqui, do contrário alguém ficará imaginando que
aquilo não eram Semanas Santas coisa nenhuma; eram, isto sim, grandes bebedouros
alagados e gigantescos comedouros à beira-rio plantados.
Felizmente nunca vi nem ouvi mais falar de outra brincadeira, esta de natureza
bizarra e de mau gosto, que a princípio os notívagos praticavam
à guisa de malhação do Judas: consistia em perturbar o sossego
alheio com alaridos e insultos e partia sempre dos retardatários dos banhos
de rio. Mas a malhação do Iscariotes prosseguiu e penso
que até hoje ainda existe. O traidor amanhecia no sábado
da Aleluia já devidamente suspenso por uma corda atada a um gancho preso
à sua cabeça de pau; nunca consegui entender por que não
era enforcado como o seu predecessor original de carne e osso. A princípio
tentava-se cortar a corda a tiros de rifle, mas nunca vi ninguém acertá-la.
Partia-se então para o vale-tudo e o boneco de capim acabava sendo esquartejado
pelos moleques.
Alguém haverá de dizer agora ao final desta escrevinhação:
"então tu trocarias toda a apoteose da Páscoa sevilhana por
esta sensaboria alcoólica e idiota?" Trocaria, sim, sem a menor hesitação.
A Semana Santa sevilhana eu posso ver na televisão, nos cinemas, nos livros,
na Internet, então só teria mesmo a perder o cheiro dos incensos.
Ao passo que as da minha aldeia eram pedaços de mim mesmo; espécies
de apêndices, extensões, auras, sombras e, ao mesmo tempo, luzes
da minha própria vida.