A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Tirando Leite de Pedras

(Raymundo Silveira)

Ontem, quando escrevinhei aquela escrevinhação sobre pescaria, uma amiga e leitora voraz mandou uma mensagem dizendo que eu seria capaz de tirar leite de pedras. Fiquei imaginando cá comigo: "pra que diabo eu iria querer tirar leite de pedras se não bebo nem de vaca?" Aliás, que eu me lembre, nunca nem mamei, e quando tinha de seis para oito anos meus pais precisavam me pagar para eu engolir um copo daquela beberagem que eu entornava tapando o nariz, somente para me ver livre daquela aporrinhação e receber a paga. De lá pra cá, o único leite que me lembro de ter bebido foi o "de onça", mesmo assim porque não havia cachaça pura por perto e eu me encontrava em tempo de beber nas calças.

Portanto jamais iria me meter a tirar leite de pedras. Para quê? Nem que estivesse morto de fome e de sede num deserto, me atreveria a beber leite de pedras. Se ainda fosse algum derivado, tipo iogurte (aquela coalhada metida a besta), queijo, manteiga, ou qualquer outro lacticínio pétreo talvez, numa crise de escassez de alimentos, eu me metesse a ordenhar pedras. Mas como nunca pus as mãos nas mamas de nenhuma mamífera (quer dizer, nenhuma não... Isto é... Pelo menos com esta finalidade de tirar leite... Bom, melhor me calar), fico imaginando como seria o procedimento para tirar leite de pedras.

Algumas facilitações me parecem óbvias demais: pedras não escoiceiam, não têm bezerro para alimentar, logo não se carece de chiqueirá-los, não precisam comer, portanto dispensam pastagens - uma raridade aqui no Nordeste -, bem como aquela torta de caroço de algodão, que aqui atende pela graça de resídio e é cara pra caramba! Mas, como tudo hoje depende da relação prejuízo/lucro, ou risco/benefício, como dizem os doutores, vamos analisar as desvantagens. Será que leite de pedra tem a mesma sustança do leite de vaca, de cabra, ou mesmo de búfala? Tenho pra mim que não; afinal pedras se alimentam tão pouquinho, então de onde elas iriam tirar matéria prima a fim de produzir leite? Tenho cá comigo que para cada litro de leite de vacas corresponderiam, mais ou menos, dez de leite de pedras. Isto sobrecarregaria demais os "ordenhadores", o leiteiro, o transporte, a pasteurização, em suma a infra-estrutura e os bens de capital requeridos para captar, transportar, comercializar, beneficiar e industrializar leite de pedras. Assim sendo, seria bem provável a inviabilidade econômica da sua produção.

Há outras inconveniências de ordem prática, anatômicas, dinâmicas, fisiológicas e geológicas. Quem possuísse, por exemplo, uma pedreira no interior da sua propriedade, por um lado estaria rico, mas por outro, teria de contratar agentes de segurança durante vinte e quatro horas a fim de vigiar e defender a sua riqueza contra vândalos e, sobretudo, invasores do MST. Quem seria idiota para ir invadir terras produtivas do ponto de vista agropastoril, quando se teria acesso tão facilmente às pedras com toda aquela gama de vantagens citadas acima? As dificuldades de ordem anatômicas e fisiológicas seriam mais facilmente superadas, embora com graves danos ambientais.

Haveria um pedricídio pavoroso, mas afinal para que servem as bananas de dinamite? Até hoje, por exemplo, o IBAMA ainda não conseguiu impedir o morticínio de peixes nos açudes através de bombas caseiras. Isto, porém, em curto prazo, certamente seria um problema perfeitamente contornável com o progresso tecnológico. Mais cedo ou mais tarde os cientistas inventariam robôs ordenhadores de pedras. Afinal, há duas décadas quem imaginasse ser possível, por exemplo, a prática de relações sexuais à distância, seria posto num hospício envolto numa camisa de força.

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