Sou um escrevinhador "escritólatra", como diz com muita
propriedade o meu irmãozinho Géber Romano Accioly e, portanto, não
posso passar um dia sequer sem escrevinhar, sob pena de sofrer graves crises de
delirium tremens. Como, até agora à noite não vinha
nada na cabeça digno (e nem indigno) de ser assentado aqui nesta tela,
fui para o meio da rua caçar assunto, de modo idêntico ao dos meus
conterrâneos quando saem para caçar preás, e dei de cara com
um enorme autidór que mostrava uma criança embarcada numa
canoa com um caniço nas mãos a pescar ou a simular tal. Pronto,
decidi, é sobre isto que vou escrevinhar. Como nunca peguei sequer uma
piaba (que os catarinenses chamam, sabe Deus por quê, piava) em toda a minha
vida, resolvi, então escrever exatamente sobre isto, ou seja, sobre nunca
ter pescado nada.
E como um assunto já vai puxando logo outro, me lembrei agora mesmo
daquele devoto de São Francisco ajoelhado aos pés do dito santo,
todos os dias, a implorar: "Meu São Francisco do Canindé, tá
com mais de dez anos que venho aqui lhe pedir pra acertar no milhar do jogo do
bicho e vosmecê nunca me deu ouvidos". Até que um dia o santo
se aporrinhou com tanto pedimento e perguntou assim: "Meu filho, quantas
vezes por mês você costuma jogar no bicho?" "Meu São
Francisco, eu juro por Deus do céu; eu quero é cegar da gota serena,
como esse vício eu num tenho nem nunca tive, meu santo; jamais joguei a
dinheiro em toda a minha vida". "Ah, meu filho, então, deste
jeito nem Deus poderá lhe atender".
Não foi bem este o meu caso; bem que tentei aprender a pescar. Com canoa
e sem canoa; de pé, sentando e até deitado; na beira do ribeirão
e no meio dos açudes; com anzol e com tarrafa; de dia e de noite; de cara
limpa como um palhaço depois do circo, ou bêbado que nem um gambá.
Numa certa ocasião se hospedou na minha casa um primo do Acre que eu nunca
tinha visto antes e me convidou pra ir pescar. Quando eu disse que jamais tinha
pescado coisa alguma, ele retrucou que se fôssemos juntos iríamos
trazer tantos peixes que o maior problema seria ter onde pô-los. Eu lhe
mostrei um freezer vazio e ele torceu o nariz: "Aí não cabe
nem a metade do que vamos trazer".
Então, eu e minha mulher saímos pelas casas vizinhas a campear
espaço em refrigeradores e prometendo doar, em recompensa, uma boa parte
dos peixes que trouxéssemos. Pois não pescamos nada e nem sequer
encontramos peixe algum para vender a fim de não passarmos por idiotas
diante da vizinhança. Por idiotas, não sei, mas por fanfarrões
e mentirosos, eu e minha mulher passamos, sim. Ele, não, pois no dia seguinte
abalou da cidade e nunca mais deu notícia.
Muito antes disso, numa manhã de domingo, um companheiro de copo e eu,
ambos de cara cheia, nos aventuramos numa jangada, "verdes mares bravios
da minha terra natal" adentro, e cujo jangadeiro estava não só
com a cara, mas com o resto da cabeça e a barriga também cheios.
A cada lançamento de anzol, um gole de pinga e um tira-gosto de piaba (ou
piava); só que as piabas/piavas tinham sido adquiridas previamente fritas
antes de embarcarmos naquela que por pouco não se tornou a nossa última
viagem.
De peixe pescado por nós mesmos "nadicas de nada" como
costuma dizer às vezes a minha amiguirmã Thaís da Cunha Marcondes.
Quando cuidamos, estávamos "em pleno mar abrindo as velas ao quente
arfar das virações marinhas". Ainda avistávamos
terra, mas muito ao longe. Meu companheiro de pescaria (sem peixe) e de "cachaçada"
(com cachaça) desatou a chorar, mas o jangadeiro o consolou com voz pastosa:
"se preocupe, não moço, nós vamos dormir ainda hoje
em Roma". Imaginei que o irresponsável estivesse blefando, mas a essas
alturas ele não sabia o que falava. Nem o que fazia.
Só estou aqui a contar essa história, graças ao serviço
de salvamento à beira-mar, cujo funcionário esteve atento ao nosso
embarque, desconfiou de que estaríamos prestes a entrar numa fria, ficou
nos observando, intuiu que iríamos sumir no horizonte e veio nos resgatar
numa lancha a motor.