A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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De Corpo & Copos

(Raymundo Silveira)

"É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A vida é líquida
."
(Hilda Hilst: Alcoólicas)

Sim Hilda, a vida é líquida. Mas não um líquido qualquer. É um coquetel. Às vezes doce, às vezes brüt, como um champanhe. Mas, geralmente, amargamara como bile. Que tem de ser sorvida até a última gota, como o fel com que deram de beber ao Homem da cruz. Embebido numa esponja. Desnecessários copos. Seu corpo exalava o último suspiro.

Há gente que morre de fome. Há pessoas que morrem de sede. Mas a tragédia não pára por aí. Porque há as que sucumbem no afã de saciar uma sede diferente. Que nunca se acaba. Não é como a sede de alguém perdido no deserto. Pois esta pode ser mitigada quando o de beber é encontrado. É uma secura tão terrível, que quanto mais se bebe, mais aumenta.

Não importa o copo. Tampouco importa o líquido. Há os que buscam, desesperadamente, os que são produzidos nas pradarias da Escócia. E os bebem, de joelhos, em grossos copos de cristal facetado. Enquanto os seus corpos tremem de prazer. Ou de delirium. Há os que se contentam com o trivial simples. E há também aqueles que sorvem o que tiver. Onde estiverem. Em copos de plástico ou de papel. Ou até mesmo sem copo algum. Contanto que seus corpos se encharquem e se contentem com a ilusão de uma efêmera saciedade. Copos e corpos não têm importância alguma para quem sente essa sede.

Há os que bordejam pelas vielas na ânsia de encontrar aberta a sede daquilo que cede o milagroso fluido que cessará a sede. Há outros a conduzir máquinas desgarradas. Com a mesma ânsia dos cambaleantes sedentos, pensando ser diferentes. E são. Mas não no sentido que imaginam. São diferentes porque enquanto os primeiros apenas se matam, estes se matam e matam sem querer querendo.

Sim, Hilda. Você tem toda razão: a vida é líquida. Setenta e cinco por cento dos nossos corpos são água. Então, não só a vida é líquida como o corpo é água. Mas há outra espécie de líquido que liquida a vida. E esse líquido está liquidando corpos. Com copos ou sem copos. Pois há alguns que bebem no gargalo...

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