(Para Adriane Curvello)
"Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento".
(Clarice Lispector)
Não me conheço. Não sei me definir. Sou incapaz até
de esboçar traços da minha personalidade. Mas conheço pessoas
que dizem me conhecer. Algumas destas afirmam que o meu universo é povoado
de fantasmas e adornado de fantasias. Que a minha vida não é Real.
Que me deixo envolver por coisas que não existem.
Não contesto. E nem poderia. Seria a pessoa menos indicada. Conhecer-se
a si mesmo é tarefa quase impossível para quem vive na Realidade.
Seria, portanto, insensato se tentasse me conhecer. Eu que vivo de ilusões.
Mas não abro mão do direito de questionar a Realidade.
Conheço gente importante que o faz. Conheço escritores sérios
que afirmam, categoricamente, que a vida é sobrenatural. Que é oblíqua.
Que há um desequilíbrio entre os seres. Um desencontro que termina
em palavras que nada significam. Conheço filósofos famosos que relativizam
a própria concepção de Realidade. Negar essa prerrogativa,
a quem quer que seja, partindo do pressuposto de que apenas filósofos e
poetas têm direito a esse direito, seria, no mínimo, uma iniqüidade.
O oposto de sonhar é não sonhar. Do mesmo modo, o contrário
de Real é Irreal. Logo, sonho não é fantasia. Nem alguém
que existe é um fantasma só porque ainda não os encontramos
fisicamente. O que acontece, virtualmente, entre duas pessoas é tão
Real quanto a própria vida. Conheço gente que adoece de ódio
Virtual. Não é impossível que morram. Ou somente os sentimentos
maus é que são verdadeiros? Verdadeiro é o mesmo que Real?
O que é a Verdade? Parece que essa mesma pergunta já foi feita a
um Deus. E se Ele sabia, ninguém sabe. Pois consta que permaneceu em silêncio.
Eu estava só. Desesperado. Sentia-me no corredor da morte, já a
caminho da câmara de gás. E aquele ser "irreal" brotou
do nada. Por um mero acaso. Do mesmo modo como dizem que surgiu a vida. Apareceu
de repente. Sem ser chamada. Sem que jamais tivesse sequer ouvido falar no meu
nome nem eu no dela. Não sabíamos nem se existíamos. Mesmo
assim, ela me restituiu a vontade de viver. Devolveu-me a paz. Segurou na minha
mão "irreal" no momento preciso de um desespero Real. E nunca
mais soltou. Foi uma fantasia? Então, não estaria passando do tempo
de fantasiar o mundo? Foi um fantasma que me amparou? Então a solução
para boa parte dos dramas da condição humana, não seria povoar
de fantasmas a face da Terra? A nossa cidade, a nossa casa, a nossa vida?
Pensava em tudo isso enquanto o avião se aproximava para pousar no antigo
Aeroporto do Galeão, ao som de um samba de Tom Jobim. Nunca nos tínhamos
visto antes. Mas sabíamos detalhes da vida um do outro, ignorados por pessoas
que conosco conviviam sob o mesmo teto. Durante anos a fio. Afinal, ia encontrá-la.
Ou Reencontrá-la? Aquele "nada" tinha de passar a "ser"
depois de quatro anos de ter acontecido sem acontecer. Aquele encontro-reencontro
entre dois fantasmas de carne e osso era uma fatalidade.