A Garganta da Serpente
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Crônica De Uma Viagem Anunciada

(Raymundo Silveira)

Não sei quem sou, nem como vim parar aqui. Não tenho consciência de quase nada. Exceto de me encontrar entre essas quatro paredes que parecem prestes a me esmagar. Curioso como não me sinto angustiado. Se fosse outra pessoa já teria enlouquecido. Eu não. Sinto-me confortável. Entretanto, uma intuição me diz que não ficarei aqui eternamente.

Não sei ao certo se estou livre ou preso. Objetivamente, estou preso, claro. Mas não me sinto assim. Alguma coisa fora do alcance dos meus sentidos, uma espécie de percepção extrasensorial, me diz que estou livre. Não tenho medo de estar aqui. Nenhuma claustrofobia. Meu único temor é que, como disse, sei que não ficarei para sempre. E não tenho a menor idéia de como sairei, pois não vejo por onde. Outra sensação muito estranha: não obstante esteja relatando tudo isso, essa é a primeira vez que experimento algum tipo de conhecimento.

Curiosamente, não enxergo nada. Mas posso perceber sons, dormir e até sonhar. Sou capaz de engolir, embora não sinta fome. Também posso respirar, conquanto aqui a atmosfera seja praticamente nula. Mesmo assim não sinto falta de ar. Não me preocupo nem um pouco por estar sozinho. Pelo contrário, outra pessoa aqui comigo seria bem mais desconfortável e perigoso.

Agora, estou sentindo as paredes me imprensando cada vez mais. Estou preocupado, não apavorado. É com surpresa que constato que elas são mais elásticas do que eu supunha. Tanto isto é verdade, que apesar da pressão, sinto que não vou ser esmagado. Pois em vez de o meu continente adaptar as suas formas e dimensões às minhas, eu é que me adapto, facilmente, às dele.

Não posso falar. Não posso emitir qualquer ruído. Ainda que pudesse, duvido que o fizesse. Jamais gritaria pedindo socorro para me tirarem daqui. Lá fora só há o desconhecido. E desconfio que temer o que não se conhece é um impulso característico dos humanos. As pessoas que têm fé que o digam. Estão cientes de que, ao morrer, irão para um Paraíso. Mesmo assim, quase todas têm medo da morte. Imaginem eu que, embora talvez não morra, não tenho a menor idéia do que me espera.

A pressão das paredes contra o meu corpo é cada vez mais intensa. Começo a me preocupar. Não exatamente porque esteja sofrendo. Estou com medo de vir a sofrer. Os batimentos do meu coração começam a acelerar e a desacelerar, conforme a intensidade das compressões sobre mim.

Acabo de perceber que debaixo de onde estou, existe um túnel. E que o chão da minha cela começa a se abrir, formando uma espécie de funil. Estou com mais medo do que antes. Muito mais. Na verdade, percebi que este verbo está mal empregado. Não estou com medo: Eu sou com medo.

Começo a entrar no funil. É, exatamente, isso mesmo. A boca é larga, mas a passagem é muito estreita. Além disso, as paredes do meu continente não são mais maleáveis como eram antes. Pelo contrário: são muito duras. E sinto que vou atravessar esse túnel que parece não comportar o meu corpo. Estou apavorado. O funil vai se estreitando cada vez mais. E eu estou mergulhando nele.

Agora, sinto angústia nas duas acepções da palavra: pela redução de espaço físico e pelo tormento emocional. Vou descendo lentamente empurrado pelas forças das partes moles, contra a resistência das duras. Comparo mal, porque não há alternativa. Mesmo assim dá uma idéia para quem nunca experimentou essa travessia. Aliás, ela está se tornando cada vez mais rara. É como se um trem, em baixíssima velocidade, estivesse atravessando um espaço subterrâneo que mal lhe comportasse. Como se a locomotiva e os vagões deslizassem arranhando as paredes.

Mesmo assim, estou conseguindo passar. Se eu parar no meio do trajeto, e ninguém me socorrer, aí sim: será o meu fim. Essa viagem jamais teria retorno. Enfim, uma luz no final do túnel. Mas a saída ainda não está tão próxima quanto parece. Desço cada vez mais, sempre impulsionando pelas paredes do meu antigo albergue que, agora, mais parece um motor. Enfim, a saída. Ponho a minha cabeça pra fora. Que ambiente estranho! Quanta luminosidade! Que frio! Não estou gostando nada disso e choro copiosamente. Agora é tarde: Nasci.

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