Esta é a primeira escrevinhação que escrevinho sob encomenda
e só irei aviá-la porque jamais poderia deixar de atender à
pessoa que encomendou; então, decidi abrir este precedente o qual espero
e confio que jamais se transformará em jurisprudência. Mas
toda exceção tem uma regra, não é mesmo? (Ou seria
o contrário?) A menos que a exceção já esteja na
menopausa...
A encomenda que recebi foi para escrever mais um texto, parodiando o projeto
"E Se...", da oficina literária da qual faço parte,
de modo semelhante ao que já fiz quando escrevi sobre o Gênio da
lâmpada de Aladim. Só que agora as circunstâncias e os protagonistas
são muito diferentes. A freguesa me pede, nada mais, nada menos
do que um texto com o seguinte tema: "E se eu fosse um utensílio
doméstico?" Aliás, acho que não era bem assim que
ela queria formular a questão, creio que ficaria mais adequado se a interrogação
fosse assim formulada: "Se tivesse de escolher, qual o utensílio
doméstico que você quereria ser?" Bem, excetuando penico,
penso que não me importaria de ser qualquer outro, mas isto seria pronunciar
"palavras ao vento" o que detestaria ter de fazer tanto ou mais do
que ser um urinol. Ou um ca... nada. Esqueçam!
Vamos pensar. Seria uma boa idéia ser, por exemplo, um talher? Para quem
possui instinto agressivo ou vingativo não haveria outra opção
mais adequada. Já imaginaram espetar, cortar, pinicar, trinchar, espatifar
diariamente, duas ou três vezes ao dia, línguas, corações,
pescoços, miúdos dos inimigos? É bem verdade que não
teria certeza se aqueles bofes eram mesmo de algum desafeto, mas como
eu não seria gente - e, portanto não teria discernimento para
saber disto - me sentiria mesmo estripando malfeitores, tiranos, agiotas, estelionatários
eleitorais, invasores, ditadores e quejandos. Sobretudo quejandos.
E se eu fosse um espremedor de laranjas, hem? Espremeria o quê, meu Deus?
Ah, já sei. Espremeria a minha própria cabeça para tentar
extrair alguma idéia, pelo menos não muito boba, quando alguém
acaso me encomendasse uma crô;nica na qual eu teria de me pô;r no
lugar de um utensílio doméstico, ou então, espremeria os
miolos de quem me fez a encomenda a fim de que ela nunca mais fosse perturbar
alguém solicitando uma escrevinhação tão sem serventia
quanto esta.
Se fosse um tacho, queria ser daqueles que, às vezes, possuem um furo
em baixo, pois hoje em dia, pouca gente manda remendar tachos furados e nem
tampouco se dispõe a jogá-los fora. Teria duas importantíssimas
vantagens: a primeira seria não ter que ir mais para o fogo. (Ia dizendo
"me queimar no fogo" será que alguém - ou alguma coisa
- poderia ser queimada noutra coisa que não fosse no fogo?). A outra,
seria não ter de guardar nenhum segredo. Se, acaso, alguém decidisse
me aproveitar para despejar alguma sujeira dentro de mim, seria imediatamente
denunciado, pois tacho furado em baixo é exatamente como fofoqueiro:
não se pode confiar nada, pois ele imediatamente repassa - geralmente
com acréscimos. E haveria coisa melhor do que uma boa fofoca? Pouquíssimas
pessoas têm coragem de admitir isto, mas existe mesmo quem não
goste?
Agora mesmo me lembrei de um utensílio doméstico que eu até
pagaria para ser - garrafa! Contanto que fosse daquelas apropriadas para conservar,
curtir e envelhecer cachaça. Já imaginaram, viver eternamente
de cara, barriga e pescoço cheios sem precisar trabalhar, sem ter ressaca,
sem despesa alguma, sem despender o menor esforço sequer para engolir
um trago! Pelo menos, para mim, seria a glória.