A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Que Utensílio Doméstico Você Escolheria Ser?

(Raymundo Silveira)

Esta é a primeira escrevinhação que escrevinho sob encomenda e só irei aviá-la porque jamais poderia deixar de atender à pessoa que encomendou; então, decidi abrir este precedente o qual espero e confio que jamais se transformará em jurisprudência. Mas toda exceção tem uma regra, não é mesmo? (Ou seria o contrário?) A menos que a exceção já esteja na menopausa...

A encomenda que recebi foi para escrever mais um texto, parodiando o projeto "E Se...", da oficina literária da qual faço parte, de modo semelhante ao que já fiz quando escrevi sobre o Gênio da lâmpada de Aladim. Só que agora as circunstâncias e os protagonistas são muito diferentes. A freguesa me pede, nada mais, nada menos do que um texto com o seguinte tema: "E se eu fosse um utensílio doméstico?" Aliás, acho que não era bem assim que ela queria formular a questão, creio que ficaria mais adequado se a interrogação fosse assim formulada: "Se tivesse de escolher, qual o utensílio doméstico que você quereria ser?" Bem, excetuando penico, penso que não me importaria de ser qualquer outro, mas isto seria pronunciar "palavras ao vento" o que detestaria ter de fazer tanto ou mais do que ser um urinol. Ou um ca... nada. Esqueçam!

Vamos pensar. Seria uma boa idéia ser, por exemplo, um talher? Para quem possui instinto agressivo ou vingativo não haveria outra opção mais adequada. Já imaginaram espetar, cortar, pinicar, trinchar, espatifar diariamente, duas ou três vezes ao dia, línguas, corações, pescoços, miúdos dos inimigos? É bem verdade que não teria certeza se aqueles bofes eram mesmo de algum desafeto, mas como eu não seria gente - e, portanto não teria discernimento para saber disto - me sentiria mesmo estripando malfeitores, tiranos, agiotas, estelionatários eleitorais, invasores, ditadores e quejandos. Sobretudo quejandos.

E se eu fosse um espremedor de laranjas, hem? Espremeria o quê, meu Deus? Ah, já sei. Espremeria a minha própria cabeça para tentar extrair alguma idéia, pelo menos não muito boba, quando alguém acaso me encomendasse uma crô;nica na qual eu teria de me pô;r no lugar de um utensílio doméstico, ou então, espremeria os miolos de quem me fez a encomenda a fim de que ela nunca mais fosse perturbar alguém solicitando uma escrevinhação tão sem serventia quanto esta.

Se fosse um tacho, queria ser daqueles que, às vezes, possuem um furo em baixo, pois hoje em dia, pouca gente manda remendar tachos furados e nem tampouco se dispõe a jogá-los fora. Teria duas importantíssimas vantagens: a primeira seria não ter que ir mais para o fogo. (Ia dizendo "me queimar no fogo" será que alguém - ou alguma coisa - poderia ser queimada noutra coisa que não fosse no fogo?). A outra, seria não ter de guardar nenhum segredo. Se, acaso, alguém decidisse me aproveitar para despejar alguma sujeira dentro de mim, seria imediatamente denunciado, pois tacho furado em baixo é exatamente como fofoqueiro: não se pode confiar nada, pois ele imediatamente repassa - geralmente com acréscimos. E haveria coisa melhor do que uma boa fofoca? Pouquíssimas pessoas têm coragem de admitir isto, mas existe mesmo quem não goste?

Agora mesmo me lembrei de um utensílio doméstico que eu até pagaria para ser - garrafa! Contanto que fosse daquelas apropriadas para conservar, curtir e envelhecer cachaça. Já imaginaram, viver eternamente de cara, barriga e pescoço cheios sem precisar trabalhar, sem ter ressaca, sem despesa alguma, sem despender o menor esforço sequer para engolir um trago! Pelo menos, para mim, seria a glória.

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