Em todo lugar por onde andei, em cada texto folclórico que li, em todas
as enciclopédias que consultei, chamava-se bumba-meu-boi, mas na minha
aldeia o nome era outro - reisado. Com efeito, era (e talvez ainda seja, embora
estando nos seus últimos estertores) um festejo popular que tinha, pelo
menos teoricamente, o propósito de comemorar a visita dos três
reis magos ao Menino Jesus. A minha curiosidade infantil transformava-me a cabeça
num remoinho de dúvidas: o que significa "Rei Mago" (que a
princípio eu entendia rei magro)? Por que somente eles três
vinham de tão longe para visitar o Deus recém-nascido? Ouro, eu
já sabia o que era; acho que foi uma das primeiras mercadorias a que
fui apresentado; incenso, mais ou menos, por causa do cheiro duma fumaça
que sentia na igreja; mas o que diabo era mesmo mirra? E a maior de todas: o
que tinha a haver aqueles bailados grotescos, cômicos, dramáticos
- cujas peripécias se desenvolviam acerca da morte e da ressurreição
de um boi -, com aquela visita que Melchior, Gaspar e Baltazar fizeram ao Filho
de Deus? Confesso que até hoje essa história fabulosa ainda não
está de todo esclarecida para mim.
O que lembro muito bem é que meu pai nos proibia de nos aproximar de
qualquer um destes espetáculos e eu não entendia muito bem por
quê, até que fui assistir a um deles. Pra começo de conversa,
atores e figurantes se encontravam quase todos embriagados, mas isso não
justificaria aqueles vetos paternos, do contrário ele teria de proibir
também desfiles carnavalescos, festejos juninos, festas de qualquer natureza
ou então, simplesmente permanecermos, ainda que fosse por alguns instantes,
nas dependências da sua farmácia, que, por acaso, ficava espremida
entre os dois maiores e mais freqüentados botecos da minha aldeia.
Embora só tenha assistido a uma destas exibições do folk
lore da minha terra, ainda me lembro nitidamente dos personagens e de algumas
das suas performances. Havia a dona Ana, que o vulgo elidia para donana,
cuja principal particularidade física era a exuberância disforme
das ancas e da região glútea, à custa de uma almofada de
fabricar rendas que a atriz, ou ator adaptava sobre as ditas regiões
a fim de simular aquela aparência grotesca e que eu nunca tinha presenciado
ao vivo, até Outubro de 2002 quando viajava num cruzeiro pelas Ilhas
Gregas e deparei com uma "donana" ao natural. Aquilo me impressionou
tanto que ainda hoje perco noites de sono procurando entender como ela se havia
para adentrar o exíguo banheiro do camarote do navio e, sobretudo, para
usar o diminuto vaso sanitário.
Existiam também papangus pais e papangus filhos e escutei um diálogo
entre eles o qual, não sei por que cargas d'água, jamais me saiu
da memória. Dizia o papangu filho: "Pai, me dê cinqüenta
mil réis". Naquela época, com cinqüenta mil réis
se comprava... O quê, meu Deus? Irei usar como padrão uma das mercadorias
mais consumidas pela população da minha aldeia - sapatos fabricados
sob medida. Pela manhã ia-se à sapataria e o sapateiro nos mandava
pôr um dos pés, geralmente o direito, sobre uma resma de papel,
traçava com um lápis um risco rente ao dedão, outro ao
rés do calcanhar e nos mandava embora com a recomendação
de vir apanhar o par às cinco da tarde. Lembro que o dono da sapataria
tinha uma dúzia de filhos e cada um deles calçava apenas um dos
pés, ficando o outro a simular frieira, enquanto o pé contralateral
de um dos demais meninos, também permanecia calçado e o outro
descalço. Com cinqüenta mil réis se comprava um sapato, digo
melhor, um par de sapatos, e isto significa que com cinqüenta mil réis
o sapateiro calçava dois filhos; como ele tinha doze, em cada leva de
calçados poupava, portanto, trezentos mil réis. Ou seja, "casa
de sapateiro, espeto de um pé descalço".
Contudo, assim já estou tendo, mais uma vez, fuga de idéias. O
que queria mesmo era reproduzir o diálogo do papangu filho com o papangu
pai, naquela noite de Janeiro dos anos 1950: "Pai, me dê cinqüenta
mil réis!" "Quarenta, menino? Pra que tu quer trinta se tu
num gasta nem vinte? Toma dez, dá cinco pra tua mãe, compra um
maço de cigarro BB e não te esquece de me entregar o troco. Olha
lá!"