Num dos Natais da década dourada dos anos setenta fui convidado para
uma ceia na casa de um amigo, cuja profissão tinha tudo a ver com ceias
de Natal; aliás, não somente com ceias de Natal, mas com todos
os outros tipos de ceia, pois ele era, por acaso, cozinheiro com curso de graduação
e de pós-graduação, nada menos do que em Paris. Havia uísque
escocês (da Escócia mesmo, não do Paraguai), champanhes
franceses, vinho do Porto e outros vinhos portugueses, inclusive os verdinhos,
já meus velhos conhecidos, Casal Garcia, Gatão e Calamares.
Mas não é o meu propósito falar acerca do monarca dos
líquidos nesta escrevinhação, pois me bate logo uma
vontade louca de beber. Além do mais, já escrevinhei tanto sobre
bebedeiras aqui nesta Internet que já sou conhecido, daquém
e dalém mar, como um alcoólatra irremissível e inveterado.
Ainda ontem recebi um e-mail de Oxford, na Inglaterra, de uma grande amiga preocupada
com o estado físico deste meu sarrabulho que, num tempo já remoto,
atendia pela graça de fígado. Respondi com um vai muito
bem, obrigado, mas juro por Deus como nem eu mesmo sei se ainda existe.
Hoje, gostaria de comentar sobre ceia mesmo, de comer, não de beber.
Claro que a quantidade de álcool ingerida naquela noite não foi
pouca, muito pelo contrário se sobrou alguma garrafa cheia, confesso
que não vi, mesmo porque saí de lá às quatro da
manhã e não estava vendo nada. Nem vendo, nem ouvindo, nem percebendo
através de qualquer outro sentido.
Mas, volto a insistir: hoje queria falar sobre ceia sólida de Natal,
e não ceia líquida. Havia vitualhas de todas as diversidades:
perus, gansos e perdizes recheados com os próprios miúdos e ovos
feito farofa; pernis de porco atochados com alho, cebola e orégano; presuntos
caramelados; todos os tipos de amêndoas que conhecia e outros a quem tive
o prazer de ser apresentado; kebabs condimentados com especiarias exóticas
como o marroquino Das-El-Hanut; frutos do mar, tais como lagostas,
ostras, peixes e camarões... Melhor parar por aqui, pois se houver algum
leitor com papeira poderia passar mal. Se aquilo fosse mesmo ceia de Natal e
aqueles filmes do Cecil B. de Mile retrataram bem o que se comia em Roma nos
festins dos Césares, então a História é mentirosa,
pois os personagens daquelas fitas nunca foram os pagãos, mas os próprios
cristãos comemorando o nascimento de Jesus.
Confesso que, apesar do volume daquele supermercado de comidas
a sua qualidade não me surpreendeu tanto quanto a sobremesa, pois nunca
tinha ouvido falar naquilo nem nos contos das Mil e Uma Noites.
Só não duvido de que tenha acontecido mesmo não
foi nenhuma alucinação alcoólica porque as pessoas
da minha família que não bebiam, e que também estavam presentes,
confirmaram depois.
Lá pelas duas da madrugada o sobrepasto foi anunciado e apagaram todas
as luzes. Eu pensei que havia faltado energia. Qual nada! Fora tudo premeditado.
Dos fundos do salão emergiram do subsolo, através de uma espécie
de elevador a céu aberto, seis garçons portando, cada qual, um
fogareiro parecido com aqueles de preparar fondue. De dentro deles esvoaçavam
labaredas de até meio metro de altura como se fossem as lavas incandescentes
de mini vulcões artificiais. De cada fogareiro, os garçons retiravam
porções carbonizadas de algo roliço, escuro e macrocefálico,
parecido com a ponta do pênis de um jumento, e punham nos nossos pratos.
Ainda pensei em recusar, mas a curiosidade não permitiu. Até hoje
estou por saber o que foi que eu comi.