Juro como me esforço para encontrar alguma coisa muito alegre para escrever
quando vem chegando o Natal, mas nunca encontro. Estou me lembrando agora mesmo
do de 1968, que passei em Manaus com mais ou menos uma dúzia de companheiros
e companheiras e sem um puto no bolso. Cursávamos o quarto ano de medicina
e havíamos conseguido nossas passagens, através da FAB, num avião
de carregar pára-quedistas, cujos assentos eram nada menos do que tiras
de lonas dispostas paralelamente à fuselagem. A nossa chegada a Manaus
coincidiu mais ou menos com o dia do tal AI 5; não sei bem o que tem
o cós a ver com as calças, mas suspenderam as nossas passagens
de volta.
Estávamos arranchados numa casa de campo (ou de selva, sei lá)
bem confortável, é verdade, mas ninguém come casa confortável.
Nem desconfortável. No dia 24 de dezembro não tínhamos
mufunfa sequer para uma passagem na carroceria de um caminhão
que passava na frente da casa três vezes ao dia. À meia noite estávamos
mortos de fome, pois não havíamos almoçado e nem jantado.
A casa era de propriedade de um cearense que morava em Manaus e se chamava fulano
de tal Castro. Lá pela meia noite a fome, a tristeza, a saudade apertaram
tanto que foi o jeito tentarmos conseguir uma saída qualquer que fosse
ela; até a assaltar estávamos dispostos, embora, naquele tempo,
eu nunca tivesse ouvido alguém pronunciar ou escrever esta palavra.
Mas assaltar o quê, ou a quem? Estávamos isolados de qualquer fonte
de vida e dinheiro humanos. Será que existe dinheiro não humano?
Desumano eu sei que existe, sim. E como! Mas, voltando a falar em assalto, só
se assaltássemos a nós mesmos; para roubar o quê, não
me perguntem que eu não sei. Foi quando o Pedro Bala, nosso colega mais
ousado, teve uma idéia genial. Em volta da casa havia numerosos patos
e o Pedro falou: "turma, vamos comer uns patos desses!" "Tu és
doido Pedro Bala, onde tu já viste se comer pato vivo?" "Vivo
não; a gente mata!" "E onde tu já viste se comer pato
cru?" "É mesmo, cara!" E se pôs a pensar. Mais tarde
falou: "O dono desta casa é muito rico. Aqui deve haver apetrechos
para se preparar uns dois patos desses!" As meninas já tinham subido
para dormir, e mesmo que não tivessem, duvido que alguma daquelas quase
doutoras soubesse ou tivesse coragem de matar uma pulga.
"Vocês não sabem o que achei: uma cozinha. Vocês matam
os patos e eu preparo!" "Como é que tu vais preparar estes
patos, Pedro Bala, se não há tempero, nem sal, nem nada e, além
do mais tu nunca sequer viste assar uma rolinha?" "Matem os patos
e deixem o resto comigo". O que a fome não for capaz de fazer o
diabo se encarrega. Puxamos os pescoços de duas aves e entregamos ao
Pedro Bala. "Taí, agora te vira". Ele arrancou as penas dos
bichos na marra; nem aferventou. Depois estripou pelos fundos tudo o que havia
dentro das carcaças e desconjuntou cada articulação. "E
agora, Pedro?" "É rapaz, vocês talvez não vão
agüentar comer estes patos sem tempero, não; mas eu, com a fome
que estou aqui como até cru".
Neste exato momento o "galo cantou pela terceira vez" e Pedro não
chorou amargamente. "Cara, me lembrei agora que nesta casa existe uma adega!"
"Mas não temos a chave". "Mas a gente arromba". E
arrombamos. Tivemos a mesma sensação de Ali Babá dentro
da pedra sésamo. Havia de tudo. Do conhaque espanhol ao vinho do Porto;
do champanhe francês ao uísque escocês; da grapa italiana
à genebra suíça. Imediatamente denominamos aquele achado
de "Adega de sua majestade, o Rei Castrão I e único",
e declaramos que a mesma estava, desde então, confiscada em nome do terceiro
Estado, ou melhor, dos seus conterrâneos flagelados do Ceará. Antes
de tudo foi aquela farra. Pela primeira vez na vida bebi uísque escocês
e champanhe francês. Os patos foram preparados à moda coqc
au vin. Claro que este nome eu só fui aprender muito depois.
Mas o prato que comemos naquele Natal foi exatamente aquele mesmo, pois as aves
foram cozidas em legítimo vinho madeira. Passamos o resto da noite bebendo,
comendo e nadando numa piscina de água corrente que ficava a montante
e a jusante de um igarapé. Depois veio a contra-revolução:
deu um rolo dos diabos e quase íamos sendo postos no olho da rua. Mas
aí já era tarde, e Inês, digo, os patos já eram mortos.