Se você tem mais de quarenta e oito anos certamente se lembrará
muito bem aonde se encontrava e o que fazia ao cair da tarde do dia vinte e
dois de Novembro de 1963, a menos que estivesse num lugar onde não existissem
transportes, jornais, energia elétrica, radinho de pilha, radioamador,
nem qualquer espécie de contacto com o mundo real.
Foi precisamente o que sucedeu com escreve isto. Por este motivo, somente por
um mero acaso lembro que me encontrava a bordo de uma canoa furada embaixo,
da qual se retirava água com um recipiente também furado embaixo,
navegando em plenas águas barrentas da represa de um açude, com
o pretexto de que estaria pescando, mas na verdade, enchendo a cara de vinho,
comendo queijo de Minas e conversando arisia,
como me contou mais tarde o canoeiro que era, ao mesmo tempo, meu companheiro
de pescaria, proprietário e único
tripulante daquela embarcação. Portanto, só fui tomar conhecimento
na tarde do dia seguinte (porque na manhã ainda estava de ressaca) de
que alguém importante a quem eu só conhecia porque tinha
ouvido falar que ele, juntamente com um velho careca, andou muito próximo
de tocar fogo no mundo quase dois anos antes havia sido assassinado.
Aquela represa era a praia da minha aldeia
e para lá se deslocavam nas manhãs de sábados e domingos
as mulheres e os homens que trabalhavam e, em qualquer hora e qualquer que fosse
o dia da semana, quem não tinha o que fazer, como era também o
meu caso naquelas férias de quase final de ano. De onde eu tirei dinheiro
para comprar vinho e queijo de Minas? Não tirei. Tirei, sim, as próprias
garrafas de vinho e a lata esférica de queijo, da despensa da minha casa
e que estavam sendo devidamente armazenados para as festas de Natal e Ano Novo.
Era uma praia semidesértica, pois num
raio de mais ou menos cinco quilômetros só morava a Chiquinha Diogo
- a doceira mais famosa do lugar - numa casa de taipa, coberta de sapê
e com o piso de barro batido, situada numa pequena elevação da
planície e muito usada pelos banhistas a quem ela emprestava as suas
alcovas para mudarem de roupa antes e depois dos banhos, a troco da comercialização
dos seus produtos que consistiam basicamente de cocadas, puxa-puxas, rosquinhas,
suspiros e esquecidos. Nas tardes e nas noites de sábados e domingos
e também nas manhãs das segundas às sextas-feiras, o local
era tão ermo que chegava a servir de motel a céu aberto para alguns
amigos meus, simpatizantes de jumentas, praticarem determinadas modalidades
alternativas de aventuras sexuais de algumas das quais fui testemunha ocular,
embora jamais protagonista.
Às vezes cogitava de escrevinhar essa história, porém
algo me inibia; talvez um resquício de pudor, constrangimento ou preconceito,
ou quem sabe, uma mistura de tudo isto. Mas quando li ontem uma linda crônica
escrita por uma excelente escritora, minha grande amiga, exaltando as maravilhas
da sua litorânea e belíssima Mangaratiba, fiquei danado de inveja
e quis também cantar as belezas da praia
da minha aldeia. Afinal, todos cantam a sua terra / também quis
cantar (no bom sentido) a minha.
(20/04/2004)