Por causa do tumultuado tráfego de Fortaleza não costumo andar
para aqueles lados. Mas hoje fui pegar o carro na oficina e um engarrafamento
me prendeu durante dez minutos bem em frente a uma água furtada onde
morei durante mais de dois anos quando era estudante do segundo grau. Quantas
lembranças, Deus meu? Por que me deste esta memória de
disco rígido que nunca deleta nada? Lembrei-me de tudo! Sou
capaz de descrever cada detalhe, não apenas dos acontecimentos invulgares,
como também do próprio dia a dia. Agora mesmo me veio à
consciência o local exato onde tomei conhecimento do assassinato do presidente
dos Estados Unidos: foi no preciso instante em que ia atravessando a rua a fim
de tomar um aperitivo antes do jantar. Porém, não há nisto
nada de excepcional porque todas as pessoas com mais de quarenta anos também
recordam onde se encontravam quando souberam daquele acontecimento. Porém,
hoje eu me lembrei de coisas muito mais prosaicas do que isto: da rede onde
dormia, e para que lado punha a cabeça; do assoalho sobre o qual se devia
pisar como se fora em ovos porque do contrário o senhorio vinha reclamar
das trovoadas; do abajur que não era nem lilás
e nem muito menos sofisticado, mas se permanecesse aceso depois de onze da noite
ele também vinha se queixar por causa da conta da luz; da convivência
humana que, por si só já é dificílima em ambientes
com privacidade, e nós éramos quatro - às vezes cinco -
morando num espaço de menos de quarenta metros quadrados. De dois companheiros,
que eram duas jóias de pessoas, tanto assim que convivíamos pacificamente
- apesar da promiscuidade - e que depois vieram a falecer em trágicas
circunstâncias. Do cinema em frente, onde assisti a dezenas de filmes;
foi lá onde conheci Fellini, Glauber, Rosselini, Nelson Pereira dos Santos,
Pasolini que ainda hoje são os diretores da minha predileção.
Recordei, recordei, não, vi: o seu Raul, a Dona Anita, a Candinha, a
Clarinha, a Nitinha, o Raulzinho - sim, naquele tempo todos os nomes tinham
diminutivos. Quando digo que os vi, não é nenhuma
força de expressão: eu os VI mesmo, hoje de
manhã! Apesar de fazer quarenta anos desde a última vez em que
estive com eles.
Só um detalhe achei diferente: o tamanho da casa. Como encolheu! Apesar
de não ter sido submetido a nenhuma reforma, o imóvel ficou muito
menor. Por que será que isto aconteceu? Eu sei; vocês todos sabem
também. É que o tempo apequena a imagem física das coisas.
Naquela época eu nunca tinha sequer entrado numa residência do
tamanho desta onde moro hoje em dia, embora não passe de um simples tugúrio.
Mas não é só isto. Quando se é criança ou
muito moço, não só as coisas, mas também as pessoas,
parecem maiores e mais importantes do que são realmente. Para quem é
jovem e estudante que nunca conheceu um luxo a não ser possuir - quando
possuía - o dinheirinho contado do coletivo, da pensão, da roupa
lavada, do cineminha no final de semana, quem possui um fusquinha é milionário;
quem tem um pequeno cargo público, é marajá, quem é
portador de um diploma universitário é tão ou mais importante
do que o Papa.
Lembrei, lembrei, não, vi: o Raimundo da mercearia ao lado onde tantas
vezes penhorava meu relógio de pulso - "herança do meu pai"
-, às vezes devido a uma extrema necessidade, outras nem tanto - como
foi o caso daquela tarde de Janeiro de 1965 em que o meu amigo, desde a infância,
Zé Henrique Leal entrou porta adentro e sem nem ao menos me cumprimentar,
foi logo declarando: "passamos no vestibular, tu no sexto e eu no segundo
lugar. Pois bem, como não tínhamos um só puto no bolso
sequer para comprar meia garrafa de cachaça a fim de comemorar, penhorei
o meu cronômetro de estimação ao Raimundo em troca do "combustível"
da comemoração. Lembrei-me - toda vez em que eu disser lembrei-me
traduzam, por favor, por enxerguei, vi, apalpei, senti o cheiro - do Paulo Dantas,
de quem comprei uma camisa fiado para pagar em módicas prestações
mensais; do Nicolau Milhome - cabo da Aeronáutica, portanto, barão
- que era o financiador e sócio majoritário
dos nossos empreendimentos alcoólicos e correlatos dos Fins de Semana;
da comida da dona Anita; da Raimundinha, sua assessora especial para assuntos
culinários; do rato que estava dentro do sapato e mordeu o dedo do meu
irmão que, sabendo onde morava, não teve a precaução
de fazer uma investigação prévia ao se calçar; do
café da manhã com pão já (in)devidamente semi-envernizado
com manteiga; das madrugadas em que chegava cansado, após horas de estudo
ao ar livre da Praça do Ferreira, a fim de que o frio servisse de estimulante
contra o sono; dos obstáculos que tinha de transpor quando não
havia uma alma caridosa que viesse abrir a porta.
Pois creiam que tudo isto acabei de rever agora, na manhã deste sábado,
durante dez minutos de tráfego engarrafado.