A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Alguém Acredita Em Inspiração?

(Raymundo Silveira)

Hoje foi outro daqueles dias que amanheci sem inspiração e resolvi escrever um texto diferente, o que talvez já seja o começo de uma inspiração. Depois de gastar inutilmente mais de uma hora espremendo os miolos para tentar encontrar pelo menos um tema, veio-me subitamente a idéia de escrever um relato dos acontecimentos do dia,  na medida em que estes iam se sucedendo. São nove da manhã e ainda não sei se vou conseguir, mas tentarei, porque essa tal inspiração, para mim, simplesmente não existe. Aquilo que há, de fato, é falta de imaginação que, pelo menos do meu ponto de vista, não tem nada a ver com inspiração. Aliás, eu nem sei com certeza o que é inspiração, por este motivo vou agora mesmo no "Aurélio" para tirar isto a limpo. Mas o verbete está lá no dicionário e diz também que inspiração é "qualquer estímulo ao pensamento ou à atividade criadora; o resultado de uma atividade inspiradora. Pessoa ou coisa que inspira; inspirador." Como nunca, até hoje, experimentei tal fenômeno, continuo a ignorar do que se trata. Irei forçar, portanto a minha imaginação; jamais apelar para inspiração, exceto, obviamente para a inspiração do ar que me entra pelos meus pulmões e para o qual nem preciso apelar, pois ele entra sem que eu perceba, pelo menos até agora, pois ainda não sofro de asma e de nenhuma doença respiratória.

Infelizmente, porém, sofro de outros males e preciso comprar alguns remédios na farmácia da Unimed, uma tarefa quase rotineira, pois costumo exercê-la pelo menos uma vez por semana. Até aí nada especial acontece. O que me deixa, primeiro perplexo e depois irritado são as complicadíssimas etapas dessa liturgia. Todas as vezes que telefono para pedir o medicamento a cantilena é a mesma; parece até uma gravação em fita magnética (será que ainda existe isso meu Deus?): "Alô eu queria uma caixa de..." "O senhor quer fazer um pedido?" Juro como até hoje - depois de quase dois anos - tenho de me conter para não dizer: "Não, quero mandar entregar ai um medicamento que vocês me pediram". Mas mesmo estando usando um telefone celular onde os pulsos (outra palavrinha que para mim cheira ao Guitão, meu cartapácio de Fisiologia dos tempos de estudante), onde os pulsos são três vezes mais caros, consigo me conter e falar: "Quero sim!" "Número da carteira". "Procure pelo número do meu CRM que é mais fácil, o numero é 007" "Aguarde! CRM 007, doutor Pacientíssimo dos Anjos Paciente?" "Isso mesmo" "Avenida Padre Cícero do Juazeiro?" "Sim" "Juazeiro do Norte ou do Sul, existem duas ruas com este nome" "Do Norte" "Número 000400000?" "Isso mesmo" "Apartamento 24?" "Não, querida" (Este querida já sai com uma entonação que está muito longe de significar querida). Para não encher o saco de quem está tendo saco de ler esta escrevinhação, são mais uns cinco minutos para dizer forma de pagamento, número do cartão, data do vencimento do cartão, código de segurança do cartão e finalmente: "O medicamento estará saindo daqui por volta de..." "Aí não agüento mais e desligo". Isso é a mesma coisa toda semana, mas porque hoje é Sábado o telefone tocou. "É para você da Farmácia da Unimed" "É o doutor Pacientíssimo?" "Sim, ele mesmo" "O senhor poderia repetir a numeração do cartão porque..." Vale reiterar que esta lengalenga, às vezes com exceção do Ita Missa Est que é o retorno do telefonema para pedir mais uma vez o número do mastervisaexpress se repete quase semanalmente há mais de dois anos.

Uma da tarde. Será que devo contar essa, meu Deus? Conto não! Pelo menos por enquanto. Se daqui para o final deste texto me der coragem, aí eu conto.

Uma e meia. Vou à janela do meu quarto a fim de caçar assunto; não vejo nenhuma Tabacaria e sim o bar em frente completamente vazio de homens cheios. Estarão cheios de bares? Não creio; acredito mais que estejam cheios de contas pra pagar. Mas nunca vi aquele bar tão vazio a esta hora como está hoje; aquele mesmo bar para onde eu ia todos os Sábados, completamente vazio e voltava somente à noite. Até a tampa. Hoje estou cheio de bares. Ou, o que é mais provável, os bares é que estão cheios de mim. Sei não. Trata-se de mais um mistério nesta minha vida tão misteriosa. Por quê? Ora por quê. Vocês já viram algum tipo de vida que não seja misterioso?

Agora são três horas e trinta e dois minutos e acabo de reler um conto de Eça de Queiroz. Lembro-me perfeitamente de que, quando o li pela primeira vez, o desfecho me fez chorar. Trata-se de "O Suave Milagre" e eu devia ter uns nove ou dez anos. Eça é um autor sui generis. Nunca vi outro parecido com ele, pelo menos na nossa língua. Existem várias peculiaridades quanto ao seu estilo. Uma delas é esse contraste incrível. Enquanto ainda hoje ele me emociona como no conto do Rabi, outras vezes me faz gargalhar sozinho a ponto de me constranger diante dos circunstantes. Já li "A Relíquia" uma três vezes de cabo a rabo; salteadamente, já perdi a conta, mas nunca deixei de rir da ironia cortante com que ele trata os hipócritas. Já em "O Primo Basílio" ele vergasta a burguesia sem pena e sem dó. Outra característica que até hoje só vi em Eça é que se trata de um escritor estritamente português. Pode-se ler Machado de Assis em qualquer língua e o efeito será o mesmo. Eça, não! Ele é intraduzível. Vejam este trecho de "O Primo Basílio" e confiram.

Tia Vitória está ditando para Gouveia escrever uma das cartas surrupiadas da patroa pela criada Juliana a fim de chantagear o casal através de uma cópia. Creio que não precisaria dizer, mas por via das dúvidas, adianto que naquele tempo ainda não havia xerox". Escreve aí, Gouveia: 'Se outra vida tivesse, dava-ta." "Dava-ta? Que palavra estranha! Nuca vi uma dávata" "Que nunca viste uma dávata, homem? Nunca poderias mesmo ter visto. Dava-ta significa: 'Dava a ti a vida'." "Ah, agora eu entendi!".  Que tradutor poria isto noutra língua? Então, como já foi dito, Eça é intraduzível. Só poderá sentir toda a sutileza do seu estilo genial quem entender português.

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