Hoje
foi outro daqueles dias que amanheci sem inspiração e resolvi escrever um texto
diferente, o que talvez já seja o começo de uma inspiração.
Depois de gastar inutilmente mais de uma hora espremendo os miolos para tentar
encontrar pelo menos um tema, veio-me subitamente a idéia de escrever um relato
dos acontecimentos do dia, na medida em que estes iam se sucedendo. São
nove da manhã e ainda não sei se vou conseguir, mas tentarei, porque essa tal
inspiração, para mim, simplesmente não existe. Aquilo que há, de fato, é falta
de imaginação que, pelo menos do meu ponto de vista, não tem nada a ver com
inspiração. Aliás, eu nem sei com certeza o que é inspiração,
por este motivo vou agora mesmo no "Aurélio" para tirar isto a limpo. Mas o
verbete está lá no dicionário e diz também que inspiração é "qualquer estímulo
ao pensamento ou à atividade criadora; o resultado de uma atividade inspiradora.
Pessoa ou coisa que inspira; inspirador." Como nunca, até hoje, experimentei tal
fenômeno, continuo a ignorar do que se trata. Irei forçar, portanto a minha
imaginação; jamais apelar para inspiração, exceto, obviamente para a inspiração
do ar que me entra pelos meus pulmões e para o qual nem preciso apelar, pois ele
entra sem que eu perceba, pelo menos até agora, pois ainda não sofro de asma e
de nenhuma doença respiratória.
Infelizmente, porém, sofro de outros
males e preciso comprar alguns remédios na farmácia da Unimed, uma tarefa quase
rotineira, pois costumo exercê-la pelo menos uma vez por semana. Até aí nada
especial acontece. O que me deixa, primeiro perplexo e depois irritado são as
complicadíssimas etapas dessa liturgia. Todas as vezes que
telefono para pedir o medicamento a cantilena é a mesma; parece até uma gravação
em fita magnética (será que ainda existe isso meu Deus?): "Alô eu queria uma
caixa de..." "O senhor quer fazer um pedido?" Juro como até hoje - depois de
quase dois anos - tenho de me conter para não dizer: "Não, quero mandar
entregar ai um medicamento que vocês me pediram". Mas mesmo estando
usando um telefone celular onde os pulsos (outra palavrinha que para mim cheira
ao Guitão, meu cartapácio de Fisiologia dos tempos de estudante), onde os pulsos
são três vezes mais caros, consigo me conter e falar: "Quero sim!" "Número da
carteira". "Procure pelo número do meu CRM que é mais fácil, o numero é 007"
"Aguarde! CRM 007, doutor Pacientíssimo dos Anjos Paciente?" "Isso mesmo"
"Avenida Padre Cícero do Juazeiro?" "Sim" "Juazeiro do Norte ou do Sul, existem
duas ruas com este nome" "Do Norte" "Número 000400000?" "Isso mesmo"
"Apartamento 24?" "Não, querida" (Este querida já sai com uma
entonação que está muito longe de significar querida). Para
não encher o saco de quem está tendo saco de ler esta escrevinhação, são mais
uns cinco minutos para dizer forma de pagamento, número do cartão, data do
vencimento do cartão, código de segurança do cartão e finalmente: "O medicamento
estará saindo daqui por volta de..." "Aí não agüento mais e desligo". Isso é a
mesma coisa toda semana, mas porque hoje é Sábado o telefone
tocou. "É para você da Farmácia da Unimed" "É o doutor Pacientíssimo?" "Sim, ele
mesmo" "O senhor poderia repetir a numeração do cartão porque..." Vale reiterar
que esta lengalenga, às vezes com exceção do Ita Missa Est
que é o retorno do telefonema para pedir mais uma vez o número do
mastervisaexpress se repete quase semanalmente há mais de
dois anos.
Uma da tarde. Será que devo contar essa, meu Deus? Conto
não! Pelo menos por enquanto. Se daqui para o final deste texto me der coragem,
aí eu conto.
Uma e meia. Vou à janela do meu quarto a fim de caçar
assunto; não vejo nenhuma Tabacaria e sim o bar em frente completamente vazio de
homens cheios. Estarão cheios de bares? Não creio; acredito mais que estejam
cheios de contas pra pagar. Mas nunca vi aquele bar tão vazio a esta hora como
está hoje; aquele mesmo bar para onde eu ia todos os Sábados, completamente
vazio e voltava somente à noite. Até a tampa. Hoje estou cheio de bares. Ou, o
que é mais provável, os bares é que estão cheios de mim. Sei não. Trata-se de
mais um mistério nesta minha vida tão misteriosa. Por quê? Ora por quê. Vocês já
viram algum tipo de vida que não seja misterioso?
Agora são três horas
e trinta e dois minutos e acabo de reler um conto de Eça de Queiroz. Lembro-me
perfeitamente de que, quando o li pela primeira vez, o desfecho me fez chorar.
Trata-se de "O Suave Milagre" e eu devia ter uns nove ou dez anos. Eça é um
autor sui generis. Nunca vi outro parecido com ele, pelo
menos na nossa língua. Existem várias peculiaridades quanto ao seu estilo. Uma
delas é esse contraste incrível. Enquanto ainda hoje ele me emociona como no
conto do Rabi, outras vezes me faz gargalhar sozinho a ponto de me constranger
diante dos circunstantes. Já li "A Relíquia" uma três vezes de cabo a rabo;
salteadamente, já perdi a conta, mas nunca deixei de rir da ironia cortante com
que ele trata os hipócritas. Já em "O Primo Basílio" ele vergasta a burguesia
sem pena e sem dó. Outra característica que até hoje só vi em Eça é que se trata
de um escritor estritamente português. Pode-se ler Machado de
Assis em qualquer língua e o efeito será o mesmo. Eça, não! Ele é intraduzível.
Vejam este trecho de "O Primo Basílio" e confiram.
Tia Vitória está
ditando para Gouveia escrever uma das cartas surrupiadas da patroa pela criada
Juliana a fim de chantagear o casal através de uma cópia. Creio que não
precisaria dizer, mas por via das dúvidas, adianto que naquele tempo ainda não
havia xerox". Escreve aí, Gouveia: 'Se outra vida tivesse, dava-ta." "Dava-ta?
Que palavra estranha! Nuca vi uma dávata" "Que nunca viste
uma dávata, homem? Nunca poderias mesmo ter visto. Dava-ta
significa: 'Dava a ti a vida'." "Ah, agora eu entendi!". Que tradutor
poria isto noutra língua? Então, como já foi dito, Eça é intraduzível. Só poderá
sentir toda a sutileza do seu estilo genial quem entender português.