Dos anos já vividos, o de 1956 foi um dos marcos mais relevantes em
termos da minha adaptação ao meio. É nele que costumo estabelecer
a plenitude da minha puberdade; foi durante ele que sucederam acontecimentos
decisivos para a minha adequação (ou inadequação)
biológica, psicológica e social.
Em 1956 todas as coisas e pessoas me pareciam eternas. Às vezes tenho
a impressão de que seria capaz de escrever um diário relatando
as suas ocorrências, mas ao mesmo tempo reconheço que seria insensato
confiar tanto assim na memória, pois esta não é tão
precisa quanto parece e pode nos trair, principalmente quanto às suas
minúcias e à sucessão exata dos fatos quanto ao tempo e
ao espaço. No registro mental de alguns acontecimentos e de certas sensações
e percepções - principalmente as de natureza visual e olfativa
-, porém, posso confiar como se tivesse tudo documentado, se fosse possível
documentar tais sensações. Entre as lembranças de pormenores
corriqueiros, posso destacar: o primeiro dia da minha primeira chegada ao internato;
o cheiro das roupas novas do meu leito; o odor emanado de uma indústria
de extração e beneficiamento de óleos vegetais que se localizava
nas proximidades da escola; o sabor de alguns alimentos, sobretudo daqueles
que antes não costumavam fazer parte da minha dieta; a fisionomia exata
de todos os meus colegas e professores (considero este detalhe tão extraordinário
que chego a hesitar se deveria mesmo citá-lo como sendo de natureza banal)
e as atividades do dia a dia, como despertar, praticar exercícios físicos,
tomar banhos, assistir a missas e a aulas, rezar, estudar e ler.
Tenho neste exato momento na tela da memória a imagem do Zé Gilberto,
uma espécie de bedel a quem chamavam prefeito de disciplina, postado
à nossa frente. Estamos todos em formação à moda
militar e ele sopra um apito enquanto executa a coreografia dos exercícios
físicos a qual devíamos reproduzir. A cada silvo do apito correspondia
um determinado movimento. Os mais freqüentes eram os de levantarmos e abaixarmos
os braços. E os que exigiam mais esforço, os chamados abdominais,
que consistiam em suspender e abaixar várias vezes o tronco, em posição
horizontal, apoiado apenas nos pés e nas mãos. Escrevi este parágrafo
apenas para ilustrar e demonstrar a capacidade de registro da minha memória.
Através dele se pode deduzir como consigo recordar detalhadamente as
demais atividades diárias que se passaram há exatos quarenta e
oito anos, mas estão todas sendo reprisadas, neste preciso momento, na
minha cabeça.
Entre os incidentes mais marcantes, lembro-me especialmente de um ataque que
perpetramos contra um "pelotão" de biscoitos. Não
sei por que (e sei, mas não há espaço nem azo para explicar
aqui) aquele magote de frangotes vivia morto de fome, embora ingerisse três
refeições diárias. Foi numa tarde de quarta-feira, quando
tínhamos direito a um passeio nas imediações do colégio
onde havia um aeroclube e ficávamos a assistir às exibições
acrobáticas dos pilotos, ou íamos até o rio, onde tentávamos
inutilmente pescar piabas com anzóis fabricados com alfinetes. Num destes
dias, ao retornarmos, deparamos com uma quantidade substancial de biscoitos
deixados provisoriamente no chão da portaria, devidamente, mas também
precariamente, acondicionados em sacolas de papel. Plástico, naquele
tempo, só a chamada matéria plástica - um derivado nem
sei de quê, parece que da borracha - com que se fabricavam brinquedos,
copos, pentes e fivelas. A escassa luminosidade crepuscular disse: "preparar";
a fome insaciável gritou: "apontar"; e o Laurianeto
(sobrinho do diretor), comandou: "fogo!" Só vi se repetir
cenas parecidas com aquela, dez anos mais tarde, e mesmo assim no cinema, quando
assisti às investidas devastadoras dos pássaros no célebre
filme de Alfred Hitchcock. Durou cerca de cinco minutos, mas foi suficiente
para que não restasse pedra sobre pedra, digo melhor, biscoito sobre
biscoito. Pena: prisão no salão de estudos durante um dia, privação
de recreios durante uma semana e privação de passeios durante
um mês.
Quando, ainda hoje, escuto as canções populares que fizeram sucesso
naquele 1956, sinto-me quase como um dos personagens daquele filme, "De
Volta Para o Futuro". Uma das mais famosas é o fado "Lisboa
Antiga", porém a que me traz mais recordações é
"Iracema", de Adoniran Barbosa - a história de uma mulher que
morreu atropelada devido à falta de cuidados com que atravessava as ruas
de São Paulo. O motivo desta inversão de evocação
musical é uma circunstância afetiva. "Lisboa Antiga"
eu só escutava durante o período duro dos estudos no internato,
mas "Iracema" era uma espécie de hino da minha aldeia, pois
parece que era o único disco (de cera, 78 rotações) que
existia no Serviço de Altos Falantes de lá e eu o associava à
imagem da criatura por quem primeiro me apaixonei na vida, sem que ela, provavelmente,
jamais tenha sabido disto, diga-se. Chamava-se Joana D'Arc do Brasil, era filha
do coletor estadual de impostos e minha tia dizia que era minha "prima"
em undécimo grau. Não sei! O fato é que foi a primeira
mulher (menina) por quem sofri por amor. E ela não sabia e, se viva estiver,
não sabe até agora, nem nunca saberá, a menos que este
escrevinhamento vá lhe cair nas mãos.
Outro acontecimento importante daquele ano foi o primeiro prêmio que conquistei.
O meu colega mais inteligente e estudioso chamava-se (chama-se) José
Gentil Mota. Nascido na cidade de Sucesso, no Noroeste do Ceará, este
menino de origem humilde é hoje um bem sucedido engenheiro civil e foi
meu colega e companheiro de internato durante três anos. Detinha uma inclinação
especial para a matemática, disciplina que sempre foi o meu tormento.
Como, além disto, era muito mais estudioso do que eu, nunca consegui
ultrapassá-lo e fui sempre o seu vice. Nunca perdíamos,
ele o primeiro e eu o segundo lugar. Em 1956 o Clube de Regatas Vasco da Gama,
do Rio de Janeiro, fez uma brilhante campanha no campeonato daquele Estado.
Eu era vascaíno doente - continuo a ser, mas sadio -, não perdia
um jogo do clube (evidentemente, através do rádio) e ainda hoje
tenho de cor a sua escalação no típico esquema daquela
época, o famoso dois, três, cinco. Duvidam? Carlos Aberto, Paulinho
e Belini. Laerte, Orlando e Coronel. Sabará, Livinho, Vavá, Valter
e Pinga. No final do ano ganhei o meu troféu em recompensa pelos segundos
lugares obtidos durante todos os meses. Eram dois singelos objetos, mas se alguém
os tivesse guardado e conservado, trocaria sem hesitação por vários
outros aparentemente mais valiosos que ganhei durante esta vida afora: uma carteira
porta notas e um chaveiro com o logotipo... Que logotipo, quem sabia naquele
tempo o que diabo era logotipo? Com o brasão do Vasco da Gama.
A maior frustração que tive em 1956 foi decorrente de um episódio
risível que já travesti de ficção e descrevi no
conto "A Calça de Tropical". Antes de possuí-la só
usava calças curtas; então aquela calça de tropical que
eu vestiria num domingo pela manhã seria um símbolo da minha transição
de menino para rapaz, da minha auto-afirmação como macho, da "avant-première
" das minhas penas coloridas de pavão. Não possuíamos
armários, então, no sábado à noite, antes de irmos
nos deitar, deixei-a dobrada sobre a mala a fim de facilitar encontrá-la
no dia seguinte - aquele que seria o da minha estréia no picadeiro que
eu considerava o mais concorrido no circo da vida. Não dormi durante
a noite e fui o primeiro a me levantar pela manhã. Aos domingos não
havia exercícios físicos. Nem sei como consegui tomar uma ducha,
escovar os dentes e pentear os cabelos, tamanha era a excitação.
E corri para apanhar e vestir a calça de tropical. Jamais o fiz. Um rato
havia roído mais de dez centímetros quadrados da minha primeira
calça comprida à altura do joelho direito.