"Dua tantum res anxius optat: panem et circenses"
(Ovidio)
Provavelmente não foi o maior e nem o mais fabuloso, porém o espetáculo
de luzes, som e cores que presenciei há pouco mais de um ano, precisamente
na noite de vinte e seis de Outubro de 2002 no Cairo, junto às pirâmides
de Queóps, Quefrem e Miquerinos , foi um dos mais impressionantes a que
já assisti depois que me tornei adulto. Pois mesmo assim, está a
muitos anos / luz de ter produzido em mim emoção semelhante à
que senti quando chegou, à minha aldeia, o meu primeiro
circo. Eu tinha de sete para oito anos, mas me recordo de cada detalhe.
Para ser bem fiel às minhas lembranças, nem se tratava de um circo,
na expressão rigorosa da palavra. Nem de um pequeno circo. Talvez, sequer
de um minicirco, mas tinha o nome pomposo de Circo Santanense,
uma homenagem do dono à população do município da
Santana do Acaraú que, segundo ele, foi o primeiro lugar onde atuou e a
população o apoiou maciçamente. Tratava-se de um pequeno
picadeiro cercado de lonas listradas e sem nenhuma cobertura. Pra se ter uma idéia
da sua precariedade, possuía apenas três artistas e suspeito que
tenha nascido da dissidência do seu proprietário - Severino Leite
- de um circo de verdade. O Severino era tudo: o proprietário, o palhaço
de rua, o bilheteiro, o ator, o malabarista, o trapezista, o equilibrista (e talvez,
o bêbado), o mágico, o palhaço de dentro, o principal comediante,
o motorista que transportava o circo num caminhão caindo aos pedaços.
Tenho pra mim que quando chovia, e as pessoas logicamente não compareciam,
ele era também a própria platéia. Outro indício do
estado de petição e miséria do circo do Severino era que,
além dos galinheiros - como as pessoas chamavam irreverentemente
àquelas arquibancadas construídas precariamente com tábuas
grosseiras superpostas -, não havia assentos e cada pessoa, se quisesse
permanecer sentada durante o espetáculo, deveria mandar, com antecedência,
as cadeiras de suas próprias residências. As nossas seguiam à
tarde, levadas por um carregador de aluguel, mas quando voltávamos, cada
qual transportava a sua. Estou me enxergando agora mesmo a conduzir a minha na
cabeça. Tratava-se de uma cadeira leve, mas reforçada, cujo assento
era formado por tiras de sola entrelaçadas.
Ao longo da minha infância fui assistir a muitos espetáculos em circos
de verdade. Todos eram fascinantes aos meus olhos inocentes, mas nenhum deles
me causou tanto impacto, surpresa, perplexidade e tantas outras emoções
susceptíveis de acontecer a uma criança, quanto o circo do Severino.
Tenho o retrato dele exatamente agora no pensamento. Era um homem de trinta e
poucos anos, cabelos ruivos e encaracolados, pele tirante a um misto de albino
e de mulato, em suma, um mestiço de branco com índio e negro, em
nada diferente de outros exemplares da nossa raça; numa palavra, um sarará.
Pode-se dizer que este homem, de certo modo, foi e continua a ser, um marco na
minha vida. Um marco do passado e do presente; no primeiro caso, pelo que ele
fazia dentro do picadeiro e que eu naquela idade, nunca imaginei
que um ser humano fosse capaz; é também um marco do presente, na
medida em que me faz refletir sobre tudo o que fazia fora do picadeiro,
praticamente sozinho, a fim de tirar dali o seu sustento. As outras duas artistas
do circo Santanense eram a Isabel, companheira do Severino, e a Maria de Lourdes,
uma mulata linda parecida com aquelas do Sargentelli, mas com a habilidade de
uma artista dos circos de Moscou. A performance da Isabel se resumia a cantar,
a dançar e a desempenhar um papel de atriz no final do espetáculo.
Sim, o Circo Santanense também exibia peças teatrais.
O primeiro grande circo a que compareci chamava-se "Garcia" e era enorme.
Diziam ser o mais rico do país. Pois bem, tudo (ou quase tudo) o que vi
no Garcia, excetuando as feras, os elefantes e os cavalos, eu já tinha
visto - em miniatura - no circo do Severino. Desde os números mais comuns
e menos arriscados, aos mais sofisticados e perigosos, como o vôo da morte,
quando ele se jogava, de ponta cabeça, de um trapézio balouçando,
a vinte metros de altura, nos braços da Maria de Lourdes que o esperava
num outro mais além, sem nenhuma rede de proteção embaixo.
Parece uma história vulgar; de fato, quando assisti várias vezes
àqueles espetáculos, eles me foram parecendo, pouco a pouco, cada
vez mais banais. Contudo, hoje fico a refletir o que levaria um homem a ganhar
a vida num trabalho tão perigoso, tão cheio de surpresas, de stress,
de incertezas e quase sem recompensa de qualquer natureza, a não ser a
de tentar divertir pessoas simples que certamente nem eram capazes de intuir o
grau de esforço despendido para a execução daquela epopéia.
Não sei com exatidão como foi o fim do Severino Leite, mas ouvi
de várias pessoas que o conheciam e acompanhavam o seu périplo pelas
aldeias semelhantes à minha, que teria sucumbido numa queda dos tais vôos
da morte. Mas como esta megera nunca voa e nem precisa voar para exercer
o seu ofício macabro, certamente foi ele quem voou para os braços
dela. Afinal são para aqueles braços que todos nós, mais
cedo ou mais tarde, voaremos também um dia.
Quando visitei pela primeira vez o Coliseu e o Circus Maximus em Roma no ano de
1980, me lembrei muito do Severino. Naquele lugar haviam sido sacrificados, coercitivamente,
centenas, talvez milhares, de vidas humanas para saciar a sede de sangue de pessoas
bárbaras e selvagens. O Severino sacrificou a sua por livre e espontânea
vontade. Para que mesmo, meu Deus?