"A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora
uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é
um continente."
(M. de Assis: O Alienista)
Já "ressuscitei" aqui três personagens "famosos"
da minha aldeia: Miguel Moreira, o poeta; Antônio Rufino, o apedeuta e
"Insosso", o mendigo feliz. Como vêem, falei apenas de homens.
Hoje pretendo evocar uma mulher. Chamava-se Raimunda Pereira e o mundo para
ela não era Real, pois era louca.
Será que o mundo dos loucos não seria mesmo Real? Seria apenas
Virtual? Mas isto é uma outra história. Do mesmo modo que o "Insosso",
Raimunda não possuía parentes, amigos, lar, alimento, o que vestir,
onde cair morta, nem tampouco razão. Vivia da "caridade" alheia,
se chamarmos a isto as sobras de comida que se dava aos porcos e, mesmo assim,
somente depois que ela apresentasse o seu espetáculo "circense".
Por isto escrevi "caridade" entre aspas, pois ela não estava
recebendo esmolas, e sim, um "cachê" miserável em pagamento
pelos atos grotescos, ridículos, humilhantes, com que divertia, sob pressão,
a sua platéia / esmoler.
"Raimunda, lê esta carta pra mim, pois acabou de chegar e eu não
sei ler". E entregavam-lhe um pedaço de papel imundo, sem nenhum
texto. Sempre começava assim, lembro-me bem: "Doze de Outubro de
1912. Espero que a senhora esteja passando bem..." E continuava a "ler"
por mais ou menos dez minutos aquelas palavras fantasmas, quem sabe, resquícios
de memória das correspondências de algum filho que talvez a escrevesse
antes da mãe enlouquecer.
Era também expert em artes culinárias. "Raimunda - pediam
as pessoas sôfregas de diversão -, me dita aí a receita
de um bolo!" A senhora quer o bolo "ca carne ou cagoma". E aquele
cacófato redobrava as gargalhadas que traduziam o prazer hilariante e
perverso dos circunstantes. O que eu nunca consigo entender é o motivo
pelo qual nós a tratávamos assim. Como se ela fosse de outra espécie
- um tipo de símio - e que tivesse de estar sempre disposta a nos divertir
à custa da sua miséria física e mental e nós ainda
achássemos que estávamos a fazer-lhe "caridade". Naquele
tempo eu ainda não conhecia este poema de Paulo de Tarso, mas ainda que
o conhecesse, duvido que fosse diferente a minha atitude:
"Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não
tiver caridade, serei como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine.
Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios
e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar
montanhas, se não tiver caridade, nada serei.
E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue
meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver caridade, nada
disso me aproveitará.
A caridade é paciente, é benigna, a caridade não arde em
ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se
conduz incovenientemente, não procura seus interesses, não se
exaspera, não se ressente do mal, não se alegra com a injustiça,
mas regozija-se com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta.
A caridade jamais acaba. Mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo
línguas, cessarão; havendo ciência, passará. Porque
em parte conhecemos, e em parte profetizamos. Quando, porém, vier o que
é perfeito, o que então é em parte será aniquilado.
Quando eu era menino, falava como um menino, sentia como um menino. Quando cheguei
a ser homem, desisti das coisas próprias de menino.
Porque agora vemos como em espelho, obscuramente, e então veremos face
a face; agora conheço em parte, e então conhecerei como sou conhecido.
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança, e a caridade. Estas
três. Porém, a maior delas é a caridade."
Quem me vê a escrever assim e a copiar estas palavras do apóstolo,
talvez haverá de pensar consigo próprio ou de comentar com alguém:
"Este sujeito é, realmente, caridoso." Qual nada! Para mim
são apenas isto mesmo: palavras! Se eu encontrasse hoje com a Raimunda
entregaria a ela o mesmo papel imundo, pediria para ler a mesma "carta"
e solicitaria a mesma receita de bolo a fim de satisfazer o meu instinto perverso
e egoísta. Somente depois daquele show grotesco eu talvez desse a ela
dois tostões à guisa de cachê e, quiçá, ainda
achasse que devia ter dado menos, como aquele Almocreve do "Brás
Cubas" de Machado de Assis.