"No seio da mulher há tanto aroma... / Nos seus beijos de fogo
há tanta vida..."
(Castro Alves)
Estava quase dormindo quando senti nitidamente aquilo que pensei se tratar de
uma alucinação. Não era. Pelo contrário, era tão
real que hoje, passados mais de quarenta anos, ainda sinto. Lembro, como se
estivesse ocorrendo agora, o lugar o dia, o mês, a hora. Certamente, a
surpresa repentina deve ter multiplicado por mil a intensidade daquela emoção.
Eu tinha apenas treze anos incompletos e nunca havia experimentado aquilo antes
nem em sonhos, embora instintivamente o desejasse com o ardor do adolescente
começando a sofrer os apelos sensuais da puberdade.
Naquele instante, porém, não existia o menor estímulo erótico.
Não havia, nem remotamente, vestígio antecipado algum daquele
acontecimento; o menor sinal de que uma coisa prodigiosa estaria preste a suceder.
Subitamente, senti a suavidade de uns lábios fartos, mornos, úmidos
e delicados tocarem levemente os meus. Tive um sobressalto seguido de um espasmo
e de um estremecimento. Uma sensação deliciosa como nunca tinha
provado. Entreabri os meus e as nossas bocas se fundiram. Sentia todo o meu
corpo como se fosse uma tocha só a emanar labaredas por todos os poros.
E o que era suavidade se transformou na mais louca sofreguidão. Tudo
aconteceu como se um rastilho de pólvora de um pavio fantasma de dinamite
tivesse, repentinamente, atingido o seu alvo, produzindo uma súbita explosão.
Uma basta cabeleira negra e sedosa encobriu a minha face. O seu cheiro junto
com o cheiro natural exalado daquela fêmea em pleno cio, ainda estão
presentes na minha memória olfativa no exato instante em que gravo estas
letras na tela fria deste computador e isto me faz sentir um pouco como se estivesse
profanando um santuário. Aquele odor de mulher linda, jovem e sensual
instigava o meu olfato, estimulava todos os outros órgãos a ele
vulneráveis e um estremecimento de prazer percorria cada centímetro
da minha pele e me fazia esquecer de tudo o que se passava ao meu redor.
Não há palavras para descrever o que resultava daquele atrito
sôfrego e prolongado entre aquela boca e a minha boca; do enlace espiralado
das línguas a se enrodilharem uma na outra como duas serpentes em pleno
ato de amor; do bafejar mútuo e simultâneo dos nossos hálitos;
do sabor das lágrimas que escorriam dos olhos, se misturando nos contornos
dos lábios e sendo sorvidas juntamente com as nossas salivas deliciosamente
promíscuas. É possível que se trate de exagerada fantasia,
mas a sensação que ainda experimento agora é a de que a
delícia daquele beijo jamais será superada, ainda que se reunissem
em apenas um, todos os orgasmos que já tive e que eventualmente ainda
virei a ter nesta vida.
É estranho como aquela comoção ainda se faz tão
presente! É maravilhosamente esquisito como o cheiro daquela mulher ainda
impregna tanto a minha olfação. É deliciosamente assustador
como tudo é tão atual. Contudo, na noite de um determinado dia
que se passou quarenta anos depois daquele beijo, seguindo o conselho do ator
Humphrey Bogart, a minha saudade me levou a querer estar três doses de
uísque acima do que costuma ficar a humanidade, a fim de tentar reprisar
aquele prodígio. Sob o efeito ilusório do monarca dos líquidos
que é o álcool, telefonei para ela e fiz tudo o que pude a fim
de ressuscitarmos juntos aquela emoção tão distante no
tempo e tão presente na minha memória. Não se lembrava
de nada. Ou fingiu não lembrar.
(09/07/2004)