Como minha vida é dividida em duas fases principais: antes e depois das
vacas gordas, resolvi embaralhar minhas escrevinhações de acordo
com o tempo vivido em cada um destes períodos. Esta de hoje é
do tempo das gordíssimas! Graças a elas o bordão: "é
o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa", jamais poderá ser
aplicado a mim, pois fui duas vezes a Roma e, numa delas, não só
o vi como conversei com ele. Pena que, para comprovar o que estou afirmando,
só tenho a minha palavra e a da minha companheira, então fica
uma história parecida com aquelas do Pantaleão e a Terta. Mas
faz mal não, irei contar assim mesmo porque o que, de fato, me interessa
foi o que aconteceu; estou me lixando para quem acredita ou deixa de acreditar.
O avião taxiou na pista do aeroporto Leonardo da Vinci, em Fiumicino,
e parou a um par de centenas de metros do edifício principal. Procedíamos
de Lisboa, via Milão, onde uma pane nos prendeu por várias horas,
sendo visível o cansaço estampado na face de todos os passageiros.
Naquele momento, minha única preocupação era acerca de
como ter acesso ao transporte previamente contratado, uma vez que era minha
segunda passagem pela Cidade Eterna e a primeira por seu aeroporto. Segui pelo
túnel sanfonado que dá acesso ao saguão de desembarque,
onde parecia se haver instalado o caos, provavelmente devido ao atraso do vôo.
Ao fundo, bem à nossa frente, destacava-se imenso placar cujo letreiro
limitava-se a duas palavras: "Mr. SIVERO". Comentei com minha companheira
de viagem, "Deve se tratar de algum magnata espanhol ou italiano, da primeira
classe".
Enfrentando, com alguma dificuldade a multidão, caminhamos até
bem próximo à saída, quando fomos abordados por um casal
de jovens, elegantemente trajado, cujo parceiro masculino sustinha, bem elevado,
o tal placar. "Você não é Mr. SIVERO?" Respondi
que não; que meu nome era Silveira, Raymundo Silveira. "Posso ver
seu passaporte?" Relutante, receando ser assaltado, exibi, furtivamente,
meu documento de viagem. "É o senhor mesmo a quem procuramos. Vimos
apanhá-los para transportá-los ao hotel".
Confesso que não esperava tamanha mordomia. Mas minha surpresa ainda
não havia terminado. Fiquei atônito quando o jovem par nos conduziu
a uma reluzente limusine e instalou-nos na cabina destinada a passageiros VIP
onde só faltava...Isso mesmo, só faltava nos recordarmos que pertencíamos
à classe média de um país do terceiro mundo chamado Brasil!
Havia desde um frigobar abarrotado de bebidas e conservas finas a telefone portátil;
desde aparelho de TV em cores a ar refrigerado. O piso era alcatifado de tapete
persa e, o revestimento das poltronas, de veludo. Depois de percorrermos os
trinta quilômetros que nos separavam do centro de Roma - durante os quais
o gentil casal discorria sobre as principais atrações turísticas
à medida que por elas passávamos - fomos instalados no Hotel Palatino,
na Via Cavour. Pouco distante do Coliseu e do Fórum e, exatamente, defronte
à Igreja de San Pietro In Vincoli, onde está o "Moisés"
de Miguelangelo.
Já ouvira casualmente o dito popular, "tristeza de alguns, alegrias
doutros", mas nunca acreditei muito nisto. Pois durante aquele verão,
em Roma, tive a oportunidade de conferir. Transcorria o ano do acidente de Chernobyl.
Àquela catástrofe, se somava a onda de atentados terroristas a
cidadãos norte-americanos no continente europeu. Para resumir, não
apenas a Itália, como também a Europa inteira estava, quase completamente,
esvaziada de turistas. Dizem que ir a Roma e não ver o Papa é
como fumar e não tragar; ir a um baile e não dançar; a
um banquete e não se servir. Os mais concupiscentes exageram: é
como transar e não beijar na boca.
A primeira vez que vi João Paulo II foi em Fortaleza, em Maio de 1980.
Não o vi propriamente: divisei o seu vulto passando, célere, no
papamóvel. A segunda foi durante minha primeira viagem à Europa,
quando fiquei a alguns quilômetros de distância de Sua Santidade
em plena praça de São Pedro, abarrotada de romeiros. Pois neste
ano não só o vi como falei com ele e até o cumprimentei!
A audiência das quartas-feiras fora transferida para um auditório
dentro do próprio Vaticano, devido à escassez de peregrinos. Terminada
a bênção apostólica, eu e minha companheira conseguimos
burlar a segurança e ficamos às suas costas, mas a poucos metros
de distância. "Santidade", falei, "sou de Fortaleza".
Ele se virou de frente pra nós pra nós e disse naquele seu português
que somente ele sabe pronunciar: "Fortaleza? Cearrrá? Gostei muito
de sua cidade" E estendeu-nos a mão. Minha companheira e eu apertamo-la,
emocionados, por alguns segundos, e nos retiramos.
(25/03/2004)