A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Somente Para Cinqüentões Saudosistas

(Raymundo Silveira)

Ontem pela manhã despertei muito cedo. Abri a porta que dá para o quintal e fui ao banheiro fazer as minhas abluções, escovações e outras "ções" que mesmo não convindo citar agora quais foram, devo lembrar a grande dificuldade que tive para reparar o resultado delas a fim de que o banheiro voltasse a ter, pelo menos, cinqüenta por cento da "assepsia" anterior. Como não havia água encanada, tive de apanhar um jarro de água dormida, fria como gelo, despejei na bacia do lavatório e - usando as mãos como se fossem conchas - lavei o rosto e penteei os cabelos. Não me atrevi a tomar um banho de cuia. Primeiro porque detesto sapos e havia uns dois ou três me espiando e batendo papo - não batendo papo uns com os outros, entendam, por favor, mas batendo os papos sozinhos. Depois porque aquela água "gelada" tirava toda a minha vontade de me banhar tão cedo, pois logo a seguir iria me sujar muito mais do que já estava. Pus o creme dental na escova e, com ajuda de um copo d'água, escovei os dentes.

A seguir, apanhei uma caixa de gillete azul - daquelas que trazem no rótulo o retrato de um senhor parecido com o ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros -, pus uma das lâminas num dispositivo cujo mecanismo de funcionamento não vou descrever agora, pois do contrário levaria toda esta crônica apenas para isto, espalhei espuma pelo rosto com um pincel e raspei a barba. Desta vez me cortei apenas quatro vezes, mas como havia pedra ume suficiente, nada demais aconteceu. Voltei ao quarto de dormir, troquei de roupa e fui acender o lume a fim de passar o meu café. Como a lenha ainda estava um pouco úmida, gastei cerca de meia hora a fim de executar aquela manobra. Pus a chaleira no fogo e, enquanto esperava a água ferver, fui à garagem esquentar o motor do jipe. Deixei-o funcionando e voltei para passar o meu café. Esta outra operação me custou outra boa meia hora. Como ainda era muito cedo, o padeiro ainda não havia chegado, de modo que tive de comer pão de anteontem, pois se tivesse de esperar o entregador de pães, iria me atrasar muito. Tinha um compromisso numa cidade vizinha - a vinte quilômetros de distância - e teria de estar no local logo depois do meio dia.

Entrei no jipe, dei macha à ré, desci para fechar a garagem e parti. Dei graças aos Céus por não nos encontrarmos no período chuvoso, pois do contrário correria o risco de ficar atolado pelo caminho. Não! Desta vez a viagem foi confortabilíssima, pois só tive de trocar dois pneus perfurados por pedras pontiagudas. A trepidação era intensa, mas como já estava habituado a ela, não me senti muito incomodado. O diabo era aquela poeira miserável que penetrava por todos os meus orifícios - inclusive pelos poros da pele - e me transformava num aspirador de pó ambulante, ficando os meus cabelos e sobrancelhas como se os tivesse tingido de ruivo. Sempre tive pêlos castanhos! Olhos, narinas, boca, ouvidos e outros buracos naturais também continham barro suficiente para abastecer uma pequena olaria.

Felizmente, às duas da tarde já havia chegado ao meu destino e, mesmo me encontrando morto de fome, pus logo mãos à obra. A finalidade da minha viagem era comprar mercadoria em grosso para abastecer o meu comércio varejista. Depois de uma hora escolhendo, indagando o que tinha, o que estava faltando e verificando o preço de cada produto numa "lista telefônica", o meu fornecedor chamou o caixa e mandou somar tudo. Esta "epopéia" demandaria muito tempo. Como a conta tinha de ser feita e, muitas vezes, refeita - pois a prova dos noves fora nem sempre dava certo - a ponta de lápis, levaria, no mínimo, umas duas horas para ser encerrada. Pedi, então, para mandar ir adiantando a embalagem em caixotes de madeira forrados com serragem e envolvidos com arcos de metais e fui jantalmoçar enquanto mandara remendar as câmaras de ar dos pneus do jipe através de um processo que não vou detalhar aqui porque teria material suficiente para escrever um pequeno manual de instruções.

Quando voltei ao armazém ainda tive de esperar mais uma hora, pois a embalagem estava "quase pronta". Encerrei a minha tarefa às nove e meia da noite e retomei a "estrada" de volta pra casa. Desta vez tive muita sorte:- só baixou um pneu; como trazia comigo uma lanterna daquelas que funcionam a bateria, não houve nenhum problema de iluminação. Cheguei em casa por volta da meia noite, "um pouco" cansado e com uns bons dois quilos de poeira, graxa, fuligem, sujo de pneu e outras pequenas poluições que tive de ir tirar através de um banho de cuia num banheiro iluminado com lamparina a querosene. A água estava muito mais fria do que pela manhã. Apesar de tudo isto, senti um imenso alívio por me encontrar em plenos meados do século XX. Estou plenamente convicto de que, se vivo ainda estiver, lá pelo o ano de 2004 estarei repetindo, constantemente, num misto de melancolia e de saudade: "Ah tempão bom aquele, sô!".

(26/06/2004)

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