A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Chão de Pedra

(Raymundo Silveira)

Pode ter sido mera coincidência, cabala ou despacho. Mas a verdade foi que, pelo menos até agora, em cada uma das décadas da vida consciente deste escrevinhador / escrevente / escrivão / escriturário, houve um ano especialmente crítico. Na de cinqüenta, foi o de 1958. Este ano começou, de fato, em Novembro de 1957 quando morreu um tio afim e eu não fui notificado a pretexto de que, por me encontrar em fase de exames finais do ano letivo, algum tipo de comoção pudesse estorvar o meu desempenho escolar. Portanto, só fui tomar conhecimento da morte do tio Luís durante as férias e estou quase certo de que, diante daquela surpresa retardada, a tal comoção teria sido muito menor se eu tivesse sido informado na época em que, de fato, aconteceu.

O ano-calendário de 1958 começou como outro qualquer, exceto pelos vestígios prenunciadores da maior estiagem já vista ou nunca vista, até então, no Ceará. Quem não conhece uma seca não faz a menor idéia de como um fenômeno climático adverso num determinado lugar pode afetar tanto a vida dos seus habitantes; mesmo, no caso específico do Nordeste, a daqueles que nunca exerceram atividades agro-pastoris ou correlatas. Na década de 1950 uma seca braba, como foi a de cinqüenta e oito, afligia a todos. Do homem mais abastado à mulher mais miserável; do médico ao aplicador de injeções e às parteiras; do juiz ao réu; do vigário ao sacristão; do bêbado mais inveterado ao mais sóbrio dos temperantes. Apenas uma única espécie de gente saía ganhando com uma seca: os políticos corruptos e seus asseclas. E mesmo assim, somente se o seu partido e os homens que o representassem se encontrassem no poder.

Em 1958 eu nem desconfiava disto, por esta razão ficava a matutar, durante as minhas raras horas de intervalo entre uma e outra atividade de estudante interno, em "regime penitenciário", quando deparava com alguns professores, todos sacerdotes, de binóculos em punho (e em olhos) a perscrutar o horizonte. Quando acaso ouvia de algum deles um lamento, uma palavra de desalento, um suspiro, questionava comigo mesmo: Quéquitém o padre Edson a ver com chuva ou com não chuva se ele não possui sequer uma rês? Que diferença vai fazer pro padre Marconi se houver um dilúvio ou uma sequidão igual àquela do quinze, se ele não tem nem um pouco de terra exceto, talvez, debaixo das unhas ou no cemitério?" Pura inocência de menino; insensibilidade de falso pequeno-burguês; santa ignorância de ignorante mesmo.

Não precisava de binóculo algum. Bastava não ser cego. O período normalmente mais chuvoso na minha terra se estende de Janeiro a Abril. Mas, naquele ressecado 1958, o horizonte diferia muito pouco da paisagem, que eu iria presenciar ao vivo pela televisão, no dia vinte de julho de 1969, menos de doze anos mais tarde, quando o Neil disse aquela obviedade, que encantou o mundo. Só que, para nós, nordestinos, 1958 foi, na verdade, um grande passo atrás. E um gigantesco salto para o demônio. Até aonde a nossa vista alcançava, o panorama era uma espécie de natureza morta pintada por ele mesmo. Belo, como são aparentemente belas as suas tentações terrenas. O zimbório celeste era completamente tomado por uma coloração azul anil. Porém destituído de quaisquer tipos de nuvens. Mesmo aquelas mais brancas e vestigiais como os cirros-cúmulos. E se esbatia, ao longo de todo o horizonte, contra um contorno de terra amarelo-enxofre, que atenuava a cor primitiva da atmosfera, a qual passava gradualmente do azul mais forte a um turquesa esmaecido.

A vegetação, quando havia, era apenas um vasto cipoal ressequido, destituído de qualquer indício de clorofila e praticamente não contrastava com o solo sobre o qual jaziam os seus esqueletos, sugerindo - a quem não estivesse habituado a ver aquilo - o rescaldo de um incêndio de proporções apocalípticas. O sol a pino aquecia aquele chão de pedra a mais de quarenta graus se estivesse à sombra e, talvez, à temperatura do inferno se estivesse exposto diretamente a ele. Foi neste ambiente meio deserto do Saara que o menino de catorze anos que eu era enfrentou a primeira grande tempestade de areia na jornada da sua vida.

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