Quando digo que costumo ver, ouvir, cheirar e sentir o passado, não estou
exagerando e nem empregando figuras de estilo. Não de trata, portanto,
de metáforas, hipérboles, apóstrofes ou eufemismos. Hoje
amanheci sentindo o cheiro de Setembro de 1957. Estou também vendo o
calçadão do seminário da Betânia repleto de colegas
vestidos de batinas pretas, aguardando o transporte em cuja carroceria subiríamos,
a fim de viajar para a serra da Meruoca onde, todos os anos, passávamos
a Semana da Pátria. Se fosse um artista, seria capaz de reproduzir com
fidelidade a figura de cada um dos meus companheiros. Estão todos alegres,
rindo, brincando, contando anedotas, cantarolando, correndo, como crianças
prestes a sair a passeio para um parque de diversões. À frente
do casarão, um caminhão da antiga Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas, com as iniciais (IFOCS) inscritas com letras enormes ao longo
da dita carroceria. Esta sigla foi imediatamente "corrigida" pelo
Mimoso - o gaiato mais inteligente da turma -: "Infelizmente Fui Obrigado
a Carregar Seminaristas". O Mimoso era de Nova Russas; tinha o cabelo meio
ruivo, cortado à escovinha e a tez muito marcada por cicatrizes de "espinhas",
o que lhe valia um sucedâneo do primeiro apelido. Deste ele não
gostava, mas fingia tolerar; entretanto, quando alguém queria irritá-lo,
bastava pronunciar a palavra cocada para que virasse uma
fera.
A diferença do clima e do cheiro do lugar de onde saíamos para
o nosso destino era abrupta. Ocorria precisamente quando o veículo terminava
de subir a primeira ladeira, há cerca de apenas cinco ou seis quilômetros
de onde havíamos partido. De um clima sufocante e cuja temperatura era
altíssima, passávamos a sentir imediatamente uma brisa fria que
comparo hoje em dia com a sensação que experimentaria ao sair
de sob este sol escaldante das ruas de Fortaleza, para entrar num gabinete de
vereador. Confesso ignorar que ato falho me fez associar ar refrigerado a gabinete
de vereador, uma vez que jamais entrei em qualquer deles, mas presumo que todos
seriam mesmo muito frios. Todavia, esta comparação só vale
quanto à temperatura, porque as demais diferenças entre a planície
e a primeira "estação" da serra, estão muito
distantes daquilo. Acabávamos de sair de uma sequidão de deserto
e entrávamos subitamente num jardim onipresente. Primeiro escutava-se
aos poucos o rumor de água despencando que ia se intensificando à
medida que o caminhão ronceiro avançava pela trilha de terra batida,
sinuosa e ascendente. Porém, o sentido que mais me fazia experimentar
aquela diferença era o da minha olfação. Era uma estanha
mistura de odores. Ao da seiva dos canaviais que margeavam o caminho, vinham
se juntar os das frutas tropicais como os dos cajus, das graviolas, das mangas,
dos sapotis, dos jenipapos. Não detenho o dom da devida organização
nem o da paciência a fim de descrever cronologicamente estas memórias,
pois agora mesmo estou também sentindo o cheiro das garapas de cana de
açúcar, dos melados, das rapaduras, das batidas, dos alfinins,
dos beijus, das tapiocas, da farinha de mandioca. Estes só se manifestariam
mais tarde, mas é impossível separar na escrita, aquilo que se
mescla, ao mesmo tempo, na minha memória olfativa. Outra diferença
entre a cidade e a serra era quanto ao gradiente de pressão atmosférica
que se refletia nos meus ouvidos. Só voltei a senti-la de novo quando
voei pela primeira vez, em 1968 na cabina despressurizada de um DC3 destinado
a carregar pára-quedistas. Consistia numa sensação de surdez
que, para os neófitos, era muito desconfortável, pois se tinha
a impressão que seria definitiva.
A casa da serra era construída em estilo rústico, mas muito grande
e confortável. Lembrava as Casas Grandes dos senhores de engenho do período
colonial e até parece que quem a projetou teria se inspirado nas descrições
detalhadas de "Casa Grande & Senzala", do mestre Gilberto Freire.
Toda alpendrada, ladrilhada de tijolos imensos, confeccionados com barro cru.
As paredes descomunais, na época, não me chamavam atenção,
tanto que só fui me lembrar delas outra vez, 45 anos mais tarde quando
visitei as casas da Rua dos Cavaleiros, situada entre o porto e o Palácio
dos Grão-Mestres, na ilha grega de Rodes. Saíamos todas as manhãs
vestidos "à vontade". Por à vontade
entenda-se as seguintes peças: cuecas compridas até o joelho,
calças grossas de algodão, camisas de mangas compridas abotoadas
no punho e na raiz do pescoço, e sotainas pretas. O "à
vontade", portanto se resumia, paradoxalmente, a evitar aquilo
que tínhamos de usar na cidade "fumegante":
não permanecer calçados com meias espessas e sapatos muito sudoríparos
e odoríferos; ao não uso do torturante colarinho de celulóide
branco e a permissão para não se abotoar os dois primeiros botões
da batina. Ganhávamos, então, o matagal armados de cutelo embainhado
à cintura, a descascar e a chupar cana de açúcar, a cortar
os cachos das bananeiras, a escarafunchar buracos de pebas e tatus ou, simplesmente
- como era o meu caso -, a praticar lançamento de facas à distância,
em troncos de quaisquer árvores. O resto do tempo era passado no engenho
e na casa de farinha que lhe ficava anexa e onde nos encharcávamos de
caldo de cana, e nos empanturrávamos com os seus derivados sólidos
e com os beijus e tapiocas com leite de coco. Aqueles sete dias se passavam
em menos de uma hora. E os quarenta e seis anos que já se passaram foram
hoje.