A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Milton e Cléa

(Raymundo Silveira)

Minha aldeia é tão pequenina que nem está representada nos mapas. Das histórias reais ou lendárias que se contam sobre ela não há praticamente nenhum registro; tudo é transmitido através da tradição oral. Houve, todavia, um episódio concreto ocorrido no início dos anos 1900, que a aproxima de lugares famosos por causa de acontecimentos - verdadeiros ou fictícios - encontrados entre os clássicos da literatura universal, envolvendo dramas passionais. Assim, Verona tem o seu "Romeu e Julieta"; a França, "Abelardo e Heloísa"; o Rio de Janeiro, "Capitu e Bentinho"; a Irlanda, "Tristão e Isolda"; a Palestina, "Sansão e Dalila". Minha aldeia tem "Milton e Cléa".

Milton foi a primeira paixão de Cléa assim como esta, também, foi a primeira de Milton. As juras de amor eterno entre eles dois, podem, portanto ser avaliadas por todos aqueles que já amaram muito pela primeira vez. A paixão é o sentimento (ou desequilíbrio emocional) humano que mais suscita nos seus protagonistas modificações comportamentais tão extremas quanto bizarras e conflituosas. Uma pessoa apaixonada é como o mar. Ora a calmaria é tamanha que chega a transmitir ao navegante uma sensação de paz, de enlevo, de quase felicidade. Como a maré, ela tem as suas idas e vindas que se traduzem na aproximação e no afastamento provisório entre os apaixonados em conflito. Porém, também como o oceano, as paixões estão sujeitas a tempestades terríveis, algumas vezes, acarretando drásticas conseqüências e sem nenhum aviso prévio.

Além disso, uma paixão é capaz de transformar, de uma hora para outra, um covarde no mais valente dos homens; uma pessoa sóbria, num palhaço ridículo; um coração gélido, num vulcão em plena atividade; um racionalista cartesiano, num romântico shakespeareano; um avarento, num perdulário; um indivíduo manso como um cordeiro, num louco assassino; um santo num demônio.

Em 1910, a borracha alcançou no mercado internacional a maior cifra, tendo o Brasil exportado o equivalente a cinqüenta por cento da produção mundial. Este fenômeno foi o maior responsável pelo surto de progresso e de riqueza na região. Portanto, assim como o nordestino hoje em dia demanda o sul do país em busca de um "Eldorado", no princípio do século XX também sucedia o mesmo, com a diferença de que a corrente migratória seguia direção inversa - o objetivo era a Amazônia. Milton seguiu esta corrente, certo de que voltaria rico e se casaria com a sua amada, mas antes de partir ambos fizeram juras de amor eterno. Comenta-se que teria havido até pacto de morte.

"Ah coração leviano não sabe o que fez do meu."

Nem do de Milton, Pulinho da Viola! Nenhum coração leviano sabe o que faz, nem com outro coração nem com nada. Contudo, o mais trágico é que qualquer coração para se tornar leviano não precisa de quase nada; bastam, por exemplo, alguma distância e um pouco de tempo. Milton permaneceu durante alguns anos na Amazônia, mas nem o tempo nem a distância arrefeceram a sua paixão. O mesmo, porém, não tinha acontecido com Cléa. Ele retornou subitamente e a primeira notícia que teve foi a de que ela teria um novo amor.

Esperou uma semana a fim de se certificar se era verdadeiro. Parece que ficou tudo confirmado ou, pelo menos, quem viveu naquela época contou como tal. No próximo domingo, após a missa, ela vinha saindo da igreja. Milton a abateu a tiros de revólver. Supunha que teria reservado para si a última bala. Pressionou o cano contra a cabeça e puxou o gatilho, mas a arma não disparou. Enlouquecido, correu e entrou numa barbearia; apanhou uma navalha e degolou a si próprio. Pelas ruas da minha aldeia nunca correu tanto sangue como naquela manhã de domingo. Sangue rubro e aquecido pela febre e pela fúria da paixão.

Na minha aldeia existem dois cemitérios. Não! Não é um dos ricos e outro dos pobres como dizem acontecer em algumas cidades circunvizinhas. É um cemitério velho e um novo. Milton e Cléa estão sepultados, lado a lado, no cemitério velho. Qualquer pessoa poderá ir até lá e conferir. Não! Também não há nenhum epitáfio sobre as suas sepulturas. Apenas a data do nascimento de cada um e a da tragédia. Entretanto, todas às vezes quando estou lá, vou sempre visitar o casal. E, como se fosse uma miragem, jamais deixo de ler estes versos de Augusto dos Anjos, inscritos na lápide de cada um deles:

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulcro -

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro!

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