A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Toda Alegria É Química

(Raymundo Silveira)

O que passaria pela cabeça de Rui Olegário nesta segunda-feira de carnaval às nove horas da manhã, que o tornava tão triste e desesperançado? Segundo ele era assim que se sentia: "Não tenho força para ter energia para acender um cigarro. / Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o Universo./ Lá fora há o silêncio dessa coisa toda. / Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer, / Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir. Pronunciou essas palavras como se ele próprio as tivesse criado naquele exato momento, mas eu sabia que estava citando Fernando Pessoa, não sei se consciente ou inconscientemente. Contudo, não ficou apenas por aí; falou da morte, da aniquilação total, da inutilidade de viver, da solidão e inclusive de suicídio. O que estaria se passando agora, apenas quatro horas mais tarde, quando ele voltou a falar comigo, mas desta feita vinha alegre, entusiasmado, pleno de energia e de vontade de viver? Quando penso na intensidade do contraste entre estes dois comportamentos, em vez de me surpreender com eles, fico perplexo diante de outro fenômeno de natureza bem diversa, isto é, na existência de quem ainda insiste em dividir o ser humano em dois compartimentos: mente e corpo; anima e matéria; somathos e psychos.

A diferença entre o Olegário das nove da manhã para aquele das duas da tarde é apenas de natureza química. O que se passou na sua consciência nada mais foi do que o resultado de milhares de reações e interações de substâncias no interior da sua cabeça. Para o Olegário das nove da manhã a morte era a única certeza da vida; para o de agora, a vida é a única certeza antes da morte. Pela manhã, ele tinha motivos relevantes, pragmáticos, objetivos, irrefutáveis para pôr um fim na própria vida. Agora à tarde, ele continua achando que ainda tem todos estes mesmos motivos, mas para continuar vivendo. Parece conto de fadas, mas a única razão desta mudança de intenções não passou da substituição de alguns compostos químicos naturais que estavam sendo produzidos em quantidades desequilibradas no interior do seu cérebro, por um outro de natureza artificial, que tomou o lugar dos primeiros. O nome dessa substância pouco interessa, mas foi ela quem fez a única diferença entre o Olegário com vontade de se matar pela manhã, para o mesmo Olegário cheio de alegria de viver, agora à tarde.

Custei a acreditar que era ele mesmo quando entrou portadentro, nu da cintura pra cima, todo lambuzado de óleo queimado, os cabelos salpicados de colorau, os olhos, os buracos da venta e a boca tamponados com goma de mandioca, maizena, farinha de trigo e carvão; uma lata de talco na mão direita, tentando polvilhar a minha cabeça; uma garrafa de pinga na esquerda e bradando estes versos juntos com uma entonação musical esquisita e que eu interpretei como uma tentativa de improvisar uma melodia; só que esta mais parecia o som de um gregoriano infernal cantado por um "tenor" de hospício: "Na minha casa não abunda leite / Na minha abunda / Na minha abunda; / Na minha casa ninguém lasca lenha, / Na minha lasca, na minha lasca; / Na minha casa ninguém pica carne, / Na minha pica, na minha pica" E logo a seguir, emendava com outra "cantiga" igualmente rebarbativa cujos versos cacofônicos provocavam o riso das pessoas com senso de humor e meneares de cabeças nas intolerantes: "Dizem que Cuba vai lança um foguete à Lua, / Será que Cuba lança? / Será que Cuba lança? / Dizem que Cuba vai talhar imagens / Será que Cuba talha? / Será que Cuba talha?".

Amanhã cedo, certamente o desequilíbrio das substâncias químicas produzidas dentro da cabeça do Olegário estará mais grave do que nunca e ele acordará com mais vontade ainda de morrer do que hoje. Mas não é ele, nem a sua "mente" nem muito menos a sua porção imaterial ou espírito quem quer que ele se mate; são elas, as substâncias naturais em desequilíbrio, que o impelem a fazer isto. Basta-lhe correr ali no bar da esquina e entornar umas três ou quatro talagadas do "rei dos líquidos" - este déspota supostamente esclarecido - e o Olegário (des)entoará uma vez mais, com voz pastosa, aquele "cantochão" arrastado e grotesco: "Na minha casa não abunda leite / Na minha abunda / Na minha abunda; / Na minha casa ninguém lasca lenha, / Na minha lasca, na minha lasca; / Na minha casa ninguém pica carne, / Na minha pica, na minha pica". " Dizem que Cuba vai lança um foguete à Lua, / Será que Cuba lança? / Será que Cuba lança? / Dizem que Cuba vai talhar imagens / Será que Cuba talha? / Será que Cuba talha ".

Se aqui tivesse sido narrada uma fábula ou contado um apólogo, haveria uma lição a ser tirada. Porém, como se trata da mais pura realidade, só resta uma situação a lamentar. Há muito tempo a ciência já descobriu inúmeras drogas que corrigem os desequilíbrios químicos dentro das cabeças dos "Olegários", sem produzirem os efeitos colaterais ridículos do álcool, mas a maioria deles continuará com vontade de se matar (e, às vezes, se matando mesmo) em virtude de não ter acesso a tais medicamentos. Seja por ignorância, falta de assistência médica, recursos materiais, ou de uma simples conversa amiga que os convença a se tratar.

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