A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Enterro

(Raymundo Silveira)

Aconteceu na manhã negra de vinte e sete de fevereiro de 1996. A terra já havia devorado muita carne de Albuquerques, de Adeodatos e de Gomes da Silveira, mas eu ainda nunca havia participado pessoalmente de nenhuma daquelas macabras oferendas. Sim, embora o Sol brilhasse intensamente, a manhã estava negra. Um negrume tão retinto a ponto de obscurecer qualquer réstia de luz que ainda pudesse brotar do meu coração angustiado; qualquer fiapo de esperança que ainda mantivesse aceso algum vestígio de vontade de viver. Naquele dia, portanto, aconteceu a primeira vez em que eu iria tomar parte ativa em um enterro. Era o enterro da minha mãe.

Não vi minha mãe morrer, mas mesmo que tivesse visto acho que saberia como iria me sentir, porque já tinha assistido ao falecimento de muita gente. Mesmo das pessoas de cujo sangue o seu não possui uma única gota, é sempre muito triste estar a assistir à morte. Por isto, tenho certeza que sei o que iria experimentar se tivesse visto morrer a minha mãe. Tenho convicção absoluta de que seria como perder um pedaço de mim mesmo; uma porção substancial da minha própria vida. Não obstante, existe uma diferença enorme entre ver alguém suspirar pela última vez e enterrar o seu corpo depois.

Não existe nada que alivie a angústia de participar do sepultamento de uma pessoa querida. Absolutamente nada. Orações, bênçãos, missas de corpo presente, sermões que falam na esperança de uma vida eterna, água benta, flores, coroas, velas, catafalcos, valiuns e álcoois. Nada funciona! Nada alivia! Posso dizer isso porque tenho experiência própria, pois experimentei tudo isto. As rezas, as missas, as bênçãos e os sermões soam como um adeus. Adeus de nunca mais! As flores, as coroas, as velas, os catafalcos, servem apenas como símbolos de uma despedida. Despedida de nunca mais! Os valiuns e os álcoois alimentam ainda mais a angústia e quando o seu efeito começa a se dissipar, como que fogo em paiol, só faz incrementar o desespero. Desespero de nunca mais!

Contudo, a mais cruel, a mais terrível, a mais horrenda experiência vem um pouco depois. É quando se trata de entregar aos vermes, a fim de que eles se banqueteiem, aquela carne que deu origem à sua carne; aquelas mãos que tanto o acariciaram; aquele cérebro que muitas vezes sofreu e lutou para lhe dar algum tipo de conforto e passou noites inteiras em claro se mortificando quando você tinha uma febrezinha insignificante; aquele coração que lhe deu aquilo que nunca ninguém lhe deu ou lhe dará jamais - o amor. Amor de nunca mais!

Fui eu mesmo que enterrei a minha mãe. Fui eu mesmo - com a ajuda de alguns caridosos amigos - que tomei o caixão e introduzi na sepultura com a cabeça dela voltada para trás e vi bem, pela última vez o seu rosto. Até hoje ainda não consigo entender como suportei aquilo. Depois de tudo, ainda fiquei presenciando o coveiro a vedar com tijolos e argamassa aquele medonho buraco, a fim de que nada ficasse incompleto. Quando tudo terminou, o Sol estava a pino, mas a escuridão da minha alma era ainda mais tétrica do que quando raiou o dia. Deixei, caminhando, o cemitério em direção ao centro da minha aldeia, mas tenho plena convicção de que em algum momento senti um corvo pousar no meu ombro direito e sussurrar estas palavras ao meu ouvido: "O meu nome é Nunca Mais!"

05/06/2004

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