A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Memórias De Um Gatinho De Malícias

(Raymundo Silveira)

Meu nome é "Menino" e sou um gato persa de cinco anos. Nunca entendi o porquê deste meu nome. Se eu fosse um menino humano ficaria mais estranho ainda. Seria a mesma coisa que me chamarem de "gato". Onde já se viu um bicho ser chamado pelo nome da sua espécie? Esses humanos inventam cada uma! Tantos nomes apropriados para um gato persa como eu... Poderiam me chamar de Chéri, por exemplo, pois é um lindo e carinhoso nome francês. Também podiam ter me batizado de Mimi. Não, Mimi, não. Mimi é um nome muito fresco e eu não tenho nada de fresco; sou um gato muito macho. Mas podiam me chamar, por exemplo, de Ted, Bob, Rick ou de qualquer outro apelido que põem nestes americanos metidos a besta. Mas agora não tem mais jeito, sou "Menino" e pronto! Desconfio que eles puseram este nome em mim porque jamais tiveram algum filho homem. Fazer o quê? Deixa pra lá.

Outra mania deles - querer interferir na minha vida particular. Quando decidi escrever estas memórias nunca pretendi usar este título que está aí acima. Foram eles que escolheram para ficar parecido com o livro de um escritor famoso de quem nunca ouvi falar. Quéqueu tenho a ver com livro de escritor famoso se eu não leio nem o rótulo das embalagens das minhas rações? Além disto, qual é a minha malícia? Só por que uma vez ou outra procuro atazanar a vida deles? Há dias, por exemplo, que, só de mal, não como a comida que eles compraram pra mim. Não como e pronto! Daí eles têm de voltar ao supermercado e trocar pela que eu gosto. Eles sabem qual é! Pra que entendem de trocar a minha ração a que já estou acostumado, por uma que jamais provei antes? Pensam que sou igual a eles - todo dia querem comer uma comida diferente.

Dizem, também, que tenho muita mordomia nesta casa, mas eu não posso dizer porque ainda não estive noutra para comparar. Os meus donos me têm como filho; pelo menos quando falam comigo dizem que são meu pai e minha mãe. Outra esquisitice dos humanos. Onde já se viu gente ser pai e mãe de gato? Isto não me perturba nem um pouco - não estou nem aí. Pelo contrário: eu me aproveito disto e faço o que quero com eles e eles só fazem o que eu quero. Há noites, por exemplo, em que não deixo o meu "pai" dormir uma hora seguida. Se estiver fora do quarto, bato na porta até que ele venha abrir mesmo que esteja caindo de sono; quando entro e vejo que ele já está dormindo outra vez, não sossego enquanto ele não acorda e abre a porta para eu sair. Há noites em que passo o tempo inteiro assim. Por que não deixam ela aberta todo tempo? Não sei pra que esta porta fechada...

Suspeito também que esta tal malícia que querem me atribuir corre por conta de um capricho meu do qual não abro mão nem a pau. Por falar em pau, um dia chegaram aqui umas crianças querendo brincar comigo, mas cantando uma cantiga da qual não gostei nem um pouco. Dizia assim: "Atirei o pau no ga t-o to / Mas o ga t-o to não morreu." No começo fiquei com muito medo, mas depois entendi que só queriam mesmo brincar. Brincadeirinha de mau gosto, sô! Mas como eu dizia, há um capricho do qual não abro mão. É que sou louco por um afago. Meu "pai" se acostumou a me afagar, por isso agora que agüente. Como gosta muito de escrever - praticamente é só o que ele faz, embora não ganhe nada com isto, nem sei como sustenta a casa -, fico aporrinhando ele na hora que está escrevendo naquele tal de computador que ele não larga nem pra ir comer. Não sei como ainda se levanta para ir ao banheiro. A única coisa que faz com que interrompa as suas escrevinhações é quando bato com a minha pata na perna dele. Aí ele se derrete todo. Sempre pára de escrever quando faço isto. Tem de me afagar; pra que inventou de me criar? Se isto for ser malicioso, aí sim, têm toda razão de terem escolhido o título destas minhas memórias. Mas ele tem uma mania chata: só por que eu peço que me acaricie, entende de me pôr no ombro, ou no colo e me abraçar. Detesto isto! Se eu gostasse de abraço saía atrás de uma gata, não de um homem. Ora, malicioso! Não tenho nada de malícia. Se quiserem me chamar de egoísta, vá lá, pois mando e desmando mais dentro desta casa do que qualquer pessoa.

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