A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Minha Primeira Fortaleza

(Raymundo Silveira)

Fortaleza, para mim, não é somente uma cidade - são três. Uma delas é a que eu vi pela primeira vez nos anos cinqüenta e que se me afigurava um lugar tão estranho e quase irreal, pois era como se fosse outro planeta, outro sistema solar, outra galáxia, outro universo, não apenas por jamais ter posto os pés fora da minha pequenina aldeia natal, mas também porque a enxergava com os olhos inocentes, assombrados e deslumbrados dos meus oito anos. Viajara de comboio puxado por uma lenta, velha e resfolegante locomotiva, soltando no ar e penetrando nos vagões um vapor ácido com cheiro de azinhavre durante doze horas, intervaladas somente pela paragem em pequenas estações padronizadas em cujos arredores tudo também era praticamente igual e uniforme; eram réplicas quase perfeitas umas das outras, como se fossem peças de dominós e, portanto, tão familiares como se constituíssem reproduções exatas do lugar de onde eu vinha. A primeira grande diferença que percebi entre esses lugarejos e a cidade grande foi o "chegar", do mesmo modo como percebeu também o Artur de "A Capital" de Eça de Queiroz ao ir a Lisboa quando deixou pela primeira vez a sua Ovar provinciana.

Quem viaja por terra, seja em rodovias ou ferrovias, nunca "chega" a uma Capital. Chega-se a vários lugares emendados uns aos outros cujas estações vão se sucedendo lentamente para, no final da viagem, encontrar outro lugar um pouco maior a que chamam Estação Central. Portanto, jamais se pode dizer: cheguei a Fortaleza, como quem diz, cheguei a Tururu; mas sim, cheguei a Antônio Bezerra, cheguei a Parangaba, cheguei a Maracanaú, cheguei ao Kilômetro 8, cheguei à Estação Central. Muito diferente, portanto, do que chegar numa pequena aldeia como a minha onde, quando menos se espera, depara-se subitamente com o último local de destino e desde então estamos praticamente dentro da nossa casa. Este detalhe, aparentemente óbvio e banal e que para outras pessoas poderia passar despercebido, foi o que mais me impressionou, admirou e impacientou durante a minha primeira "chegada" a Fortaleza.

Era como se estivesse vivendo outra vida. Declarou-se acima que a diferença entre estar numa pequena cidade interiorana e numa grande capital, poderia ser comparada a estar dentro ou fora do planeta; pois o mesmo se aplica também em relação ao tempo. Estar numa grande metrópole logo depois de se ter estado numa pequena povoação é quase como sair abruptamente da Idade Média para o século XX. Metrópole! Ah, minha Fortaleza do ano 2004! Quem te viu e quem te vê! Aqueles olhos de menino que te enxergaram aos oito anos não são os mesmos que te enxergam agora através desta janela de apartamento diante da qual o atual proprietário dos olhos escreve esta carta para ti. Então eu te pergunto: mudaste tu ou mudei eu? Nem uma coisa, nem outra; ambos somos outros. Quem te viu e quem te vê não são a mesma pessoa, do mesmo modo que aquela acanhada capital que vi menino, não tem absolutamente nada desta imensidão iluminada e deslumbrante que deparo agora do alto deste edifício. Mas, como diria Machado, isto são coisas futuras. Fiquemos, portanto, mirando apenas coisas passadas daquela antiga Fortaleza - a primeira das outras duas que conheci.

Evidentemente uma criança de oito anos não é capaz de avaliar o grau de desenvolvimento nem muito menos a estrutura socioeconômica de qualquer lugar, quanto mais de uma grande cidade onde nunca esteve antes. Ainda assim posso garantir que, naquele tempo, ninguém em Fortaleza sabia qual era a diferença entre asfalto e assalto. Não se tinha a menor idéia de que edifício era difícil. Todo mundo estranharia demais se alguém lhes dissesse que em suas ruas não existiam viadutos, nem nas suas praias, óleo bruto. Não havia também quem conhecesse a palavra traficante porque na última vez que este vocábulo fora pronunciado os tempos eram os da escravatura e, por conseguinte, ainda não tinha nascido ninguém da população daquela época. Contudo, a Fortaleza sobre a qual quero e posso falar não é esta, mas aquela que vi e senti quando criança; como ela se manifestava à minha percepção infantil e não à das outras pessoas, fossem ou não os seus habitantes; tivessem ou não estado lá em alguma ocasião qualquer.

Alguns detalhes banais, outros nem tanto me chamavam a atenção. O coração da urbe - a Praça do Ferreira - era o ponto de convergência de todas as classes sociais. Ao centro, erguia-se a coluna da hora, único pormenor que Fortaleza tinha em comum com a minha aldeia que também tinha a sua. Aquele monumento afrancesado que conheci menino e hoje ainda identifico, tal qual era naquele tempo graças à minha memória privilegiada, era um símbolo da arte arquitetônica dos princípios do século XX e nada tinha a ver com a coluna da hora de hoje. A assimetria das suas linhas, a originalidade do seu estilo e os detalhes imitativos de pequenos elementos botânicos, posso quase rever reproduzidos nas ruas de Paris quando me encontro por lá flanando à toa.

Outro recanto inesquecível da praça era o Abrigo Central. Não consigo comparar com ele nada do que conheci até hoje. O único lugar onde estive que, com muito boa vontade e se multiplicar por mil o abrigo, me faria lembrar dele, é - não ria, por favor, quem conheceu a ambos - o Grande Bazar de Istambul. Tratava-se de uma pequena estrutura sem forma definida recoberta por um teto de cimento armado sob o qual se reuniam amostras de tudo o que Fortaleza possuía naquela época. Ali se fechavam negócios milionários e se jogava no bicho; compravam-se revistas e jornais do mundo inteiro e se tomava caldo de cana com pastel; discutia-se desde a política de Vargas até o resultado de um jogo Ferroviário X Usina. Enfim, o Abrigo Central que conheci era uma espécie de vagabundódromo da Fortaleza dos anos cinqüenta.

Ainda teria muito que dizer da minha primeira Fortaleza. Não falei do mar, que vi pela primeira vez naquele ano; das viagens nos ônibus circulares que meu pai me levava a fazer durante horas a fim de que eu tivesse pelo menos uma idéia da grandeza da cidade; da Praça José de Alencar e do Teatro com sua fachada em estilo coríntio e ambiente interno art nouveau; da Base Aérea, onde vi pousarem e decolarem, pela primeira vez, os pássaros de metal; dos trilhos dos bondes; do "Bar Cearazinho" onde todas as noites meu pai bebia o copo de leite gelado da sua dieta (errada) de ulceroso e eu o meu refresco de maracujá bem gelado; do bairro de Otávio Bonfim e da casa da minha prima Maria Amélia onde ficávamos hospedados. Não falei, enfim, sobre um dos fatos mais curiosos - o que fui fazer lá. Muita gente vai pensar que estou mentindo, mas fui bater um retrato e comprar a roupa da minha primeira comunhão.

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