A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Homem X Mulher - Para Além Da Anatomia

(Raymundo Silveira)

"Qui a la coeur, il ait le corps"
(Chrétien de Troyes: Cligés ou La fausse morte)

Tal quais as águas mansas de um regato, a epígrafe de Troyes só é válida quando flui numa única direção, isto é, conquistar o coração é, com efeito, conquistar o corpo, porém quando este coração e este corpo conquistados pertencem a uma mulher; entre os homens esta regra é diferente; muitas vezes chega a se manifestar através de um processo completamente inverso quando não se torna incongruente, ou seja, uma vez que o seu corpo possua ou seja possuído, o coração da parceira se torna até mesmo dispensável. Por mais cruel que se possa considerar, isto é uma lei biológica que transcende as emoções e tem suas raízes fincadas na árvore da evolução dos primatas. Em outras palavras, para a mulher, os verbos amar e sexuar se confundem, por outro lado, para a maioria dos homens constituem fenômenos totalmente distintos.

Do ponto de vista de quem escreve este texto, essa diferença de ordem afetiva entre o macho e a fêmea da espécie humana é tão gritante quanto as divergências de natureza anatômica. De fato, a mulher só entrega o seu corpo a um homem quando o ama sem restrições ou quando não lhe resta nenhuma alternativa. Neste último caso, não há propriamente uma entrega, mas uma comercialização, em nome de uma extrema necessidade de sobrevivência.

Houve um tempo em que cheguei a ficar propenso a discordar de tudo isto; foi quando apareceu a Internet com os seus chats, suas salas de sexo virtual, seus ICQs e, MSNs. Cheguei inclusive ao extremo de escrever isto há cerca de uns três anos e meio: "Com o advento da Web a sexualidade dos internautas, de ambos os gêneros, vem se tornando cada vez mais uma função fisiológica como outra qualquer (...) De algum modo, mulheres e homens foram beneficiados, mas as primeiras ganharam muito mais, pois a repressão que elas sofriam, atingia as raias da irracionalidade, do preconceito, do absurdo. Para elas, o significado do verbo amar está a cada dia se distanciando mais do sexuar e vice-versa. Ao afirmar isto faço menos um juízo de valores do que uma constatação prática". Como estava equivocado!

Com efeito, muitos falsos indicativos me levaram a pensar assim, pois pelo que observei e ainda observo hoje em dia, a atividade sexual feminina sofreu (ou gozou) um incremento extraordinário depois dos chamados relacionamentos virtuais. Sucede que eu confundia praticar sexo com a entrega total e absoluta de uma mulher a um homem. De fato, muito antes da Internet as mulheres tinham desejos, libido, se masturbavam e, portanto, a sexualidade feminina nunca deixou de existir. Com o aparecimento da Internet tal sexualidade passou a ser compartilhada com um ou vários parceiros. Algumas mulheres simulam excitações. Muitas outras chegam mesmo a ter orgasmos diante de um computador interagindo com um parceiro remoto. Mas daí a se abandonarem ou se entregarem incondicionalmente a um homem, existe uma distância maior do que aquela que os separa geograficamente.

Quantos "amores" virtuais se esvaecem diante da realidade tangível! Tenho conhecimento de situações hilárias onde os parceiros aparentemente curtiam uma paixão avassalora através do computador, e ao se encontrarem tudo se tornou evanescente. Não se quer dizer com isto que não seja possível existir a verdadeira entrega virtual de uma mulher ao seu homem; isto acontece com alguma freqüência, mas não é tão comum quanto se imagina. Portanto, não é impossível a um homem seduzir uma parceira virtual a ponto de possuí-la tão intensamente quanto numa situação real - ousaria mesmo dizer que às vezes até com muito mais prazer porque as inibições milenares desaparecem quase completamente. Mas que nenhum deles se iluda: elas só entregarão o seu corpo sem nenhuma reserva quando o seu coração tiver sido previamente conquistado.

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