A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Prato Mais Delicioso Que Já Provei Na Vida

(Raymundo Silveira)

Desde quando comecei a me interessar em compreender determinados comportamentos da gente brasileira, sobretudo entre a pequena-burguesia, tenho descoberto coisas espantosas. A maioria delas aprendi com Gilberto Freyre em "Casa Grande & Senzala". O falar alto, por exemplo, teria resultado do costume de senhores e, principalmente, de filhos de senhores de engenho, ao passar quase todo o tempo a gritar chamando as escravas a fim de lhes servirem desde um copo d'água a certos favores de natureza concupiscente. Há uma outra característica que praticamente só se observa entre nós: - a espera eterna de que tudo um dia, como num passe de mágica, melhore ou se resolva espontaneamente em nossas vidas. Não me refiro à esperança, vejam bem; esta é não apenas comum a todo ser humano, mas também uma das razões pelas quais nos mantemos vivos. Existe uma canção do Chico Buarque de Holanda que traduz muito bem, através da poesia, o que estou querendo dizer:

"Pedro pedreiro fica assim pensando
assim pensando o tempo passa
e a gente vai ficando para traz
esperando, esperando, esperando, esperando o sol
esperando o trem
esperando o aumento
desde o ano passado
para o mês que vem
".

Pois bem, isto é puro, sebastianismo, uma palavra oriunda da Península para designar aquelas pessoas "que outrora acreditavam (e ainda hoje acreditam, por superstição) na volta de D. Sebastião (1554-1578), rei de Portugal que desapareceu na áfrica".

Estes são apenas dois exemplos, mas existem muitos outros hábitos próprios dos brasileiros que só os antropólogos e sociólogos que estudam as nossas origens conseguem explicar. Todavia, há uma particularidade típica da classe média para a qual nunca logrei encontrar qualquer explicação racional (e nem irracional): - a negação da pobreza. Com efeito, o brasileiro médio raramente confessa - aparentemente por causa de um inexplicável orgulho - quando se encontra a enfrentar dificuldades financeiras. Quem escreve este texto já redigiu muitos outros onde relata as agruras da sua vida de estudante e, por causa disto, tem recebido alguma censura, a seu ver, preconceituosa, através dos chamados PVTs - que prefiro rebatizar de "canos PVCs", em virtude de entender que se trata de uma nomenclatura mais apropriada.

Hoje vou contar mais um episódio que se passou no tempo das minhas vacas macérrimas e das espigas canhanhas, mas duvido que muita gente, no meu lugar, se dispusesse a fazer o mesmo, expondo-o na janela da Internet, para o mundo inteiro tomar conhecimento - supondo que o mundo inteiro estivesse interessado na história de um joão-ninguém audacioso -, aquilo que para alguns pareceria, humilhação; para outros, autopiedade e para uns terceiros, bravata de pequeno-burguês procurando atrair para si os holofotes da admiração ou da compaixão.

Vou declarar nada mais, nada menos, qual foi a mais gostosa iguaria que as minhas papilas gustativas já tiveram o privilégio de saborear e confesso logo de saída que se tratava de uma prosaica omelete de sardinhas enlatadas. Decerto, quem está lendo este texto estará também a rir da ingenuidade e da carência de requintes alimentares do autor, mas não se trata de nada disto; pelo contrário, me considero um gourmand. Se não vejamos. Enquanto estou viajando, minha gula não conhece limites nem o meu paladar se atém a degustar atrações turísticas culturais. Comer e beber bem são, para mim, tão importantes quanto visitar museus, palácios, mesquitas, sinagogas, catedrais góticas e ruínas históricas. Já lavei minhas cuecas e meias em pias de banheiros de hotel; fui diversas vezes de metrô do centro de Londres e de Paris para o aeroporto com toda a bagagem; neguei gorjetas a quem, em tese, teria "obrigação" de dar; saí do aeroporto de Heathrow, diretamente para a Victoria Station, no segundo andar de um ônibus carregando malas e sacolas pesadíssimas; hospedei-me em hotéis tão precários, onde não se servia sequer o café da manhã (e eu ficava sem tomar). Tudo isto para economizar dólares. Mas nunca poupei um puto quando se tratava de almoçar ou de jantar.

Meus restaurantes em Paris - quando chego e, portanto com as algibeiras ainda recheadas de "verdinhas", são o "Maxim's" e o "Caviar Kaspian". E, quando já estou ficando liso, leso e louco, o "Chez Clement" e o "Alsace a Paris" onde, mesmo sendo de categoria bem inferior aos dois primeiros, um jantar, com vinho, para duas pessoas, não sai por menos de um Benjamin Franklin. Nunca ouvi citarem o nome de um prato da cozinha francesa, portuguesa, espanhola, alemã, escandinava e holandesa que já não tenha experimentado. Penso que isto explica o quanto meu paladar é exigente e como nunca medi dólares para satisfazê-lo.

"Então ó cara pálida, explica logo por que uma mísera fritada de sardinha foi o quitute mais delicioso que já provaste na tua vida!" Vamos lá. No princípio do ano de 1962 cheguei a esta Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção com a coragem, a cara, uma calça, uma camisa e uma cueca. A calça tinha bolsos, sim, mas estes só continham ar; isto é suponho que contivessem mesmo, pois nunca as examinei para conferir. Durante os primeiros quarenta e cinco dias, almoçava (mas não jantava) a crédito, na casa de um fornecedor de marmitas que, não sei se por coincidência ou pura inadimplência dos clientes - inclusive eu -, foi à falência exatamente depois daquele mês e meio em que por lá boiei.

Até assumir meu primeiro emprego, em Maio daquele ano, raramente tomava um quebra jejum, dificilmente (muito dificilmente mesmo) almoçava e nunca jantei. Houve dez dias seguidos em que nem o tal quebra jejum eu engolia. O organismo dos mamíferos depois de três ou quatro dias sem ingerir qualquer tipo de alimento, produz uma substância que inibe a sensação de fome, de sorte que nem esta eu sentia mais. Pela minha boca só entravam água e ar. Estava definhando e senti medo de morrer de desnutrição aguda. Atribuo á circunstância de possuir alguma gordura de reserva debaixo da pele, a sorte de haver escapado. Pois numa certa tarde, vi um aldeão meu conterrâneo, muito amigo do meu pai e expus a ele as minhas agruras. Deu-me uma quantia equivalente a mais ou menos dez dólares de 2004. Foi neste dia que comi a tal omelete de sardinha. O acepipe mais delicioso que os meus olhos já viram, meu olfato cheirou e o meu paladar degustou. Ainda hoje rezo a Deus pela alma do meu esmoler.

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