Minha memória auditiva encontra-se sempre tão impregnada pelos
sons do passado que quando eventualmente os escuto me sinto transportado de
volta para lá, como se tivesse viajado no tempo. Há muitas melodias
que me reconduzem à infância as valsas vienenses que escutava
no rádio; as marchas carnavalescas que a orquestra tocava no clube durante
os bailes; as marchas marciais que a banda executava todas as noites durante
as festas religiosas e os velhos e repetitivos sambas canções,
boleros, baiões, xotes e até música americana (Begin
The Beguin era uma delas), cujas gravações em discos de
cera eram postos tão insistentemente para rodar a cada noite no serviço
de alto-falantes que, com o passar do tempo, a agulha ia espiar o que havia
na outra face do 78 rpm. Entretanto, é curioso: o efeito sonoro que mais
desperta as minhas lembranças, hoje não os escuto mais
eram os sons do sino da minha aldeia.
Não os escuto mais é modo de dizer, pois os estou
ouvindo neste exato momento e o mais incrível é que percebo aquele
bimbalhar tão íntimo conforme as ocasiões para as quais
ele tivesse especificamente de soar, tais como: o repicar alegre durante as
alvoradas das novenas da padroeira, do Santo Chico de Assis e da Senhora de
Lourdes do Ceará; as batidas lentas e pungentes com que anunciava a morte
de algum fiel aldeão, meu conterrâneo; as pancadas firmes e decididas
quando nos chamava para as missas dominicais; os sons compassados e piedosos
que transmitiam a mais pura reverência durante a elevação
da hóstia que acabara de ser consagrada; o som rítmico e suave
que emitia durante a bênção do Santíssimo Sacramento.
A princípio, eu imaginava que não existiria em qualquer outro
lugar do mundo um sino cujos bimbalhares soassem tão alto quanto os dele.
Ledo e cedo engano! Já escutei muitos sinos por este mudo afora: o histórico
ding dong do Big Ben londrino; os não menos famosos carrilhões
da Notre Dame de Paris cujos sons, escutados por Victor Hugo, foram projetados
no seu personagem Quasímodo; as inconfundíveis badaladas dos sinos
da Basílica de São Pedro em Roma; as marteladas aplicadas a cada
hora nos vários e imensos sinos do Campanille de San Marco, em Veneza,
pelos mouros de bronze; o soar dos sinos da prefeitura de Munique e o seu espetáculo
de todos os dias ao meio dia quando se ajunta uma multidão de turistas
somente para assisti-lo. Fenômeno parecido também presenciei em
plena Staré Mesto Námesti em Praga, pertinho da casa onde Franz
Kafka morou durante vários anos. Enfim, por onde passei durante as minhas
vagueações pelo velho continente, escutei milhares de decibéis
advindos das sonoridades emanadas por egrégios carrilhões, mas
nenhum deles ecoou tão docemente nos meus ouvidos como o som do pequenino
sino da minha aldeia.
O cubículo onde se escondia era tão pequeno que não ouso
chamá-lo de torre. Como sei disto? Ora, simplesmente porque durante algum
tempo fui também o sineiro da minha aldeia. A igrejinha que o abrigava
era muito humilde não se podendo sequer falar em estilo arquitetônico,
pois lembrava mais uma orada semelhante àquelas utilizadas pelos primeiros
jesuítas que vieram civilizar os nossos indígenas através
das chamadas missões. Quantas vezes subi no seu coro que era representado
por um diminuto balcão onde se cantava e tocava órgão durantes
os cultos religiosos! Nos fundos deste e exatamente ao centro, subia-se um batente
alto e se penetrava no tal cubículo de cujo teto pendia o sino e de dentro
dele o badalo que era acionado através de uma corda. Houve um certo dia
em que minhas mãos se encheram de calos em virtude de terem permanecido
durante mais de duas horas tocando sinal pela alma de um padre supostamente
morto num acidente de automóvel, mas cujo corpo nunca apareceu porque,
na verdade, ele havia se escafedido da sua paróquia na calada da noite,
pois havia comido uma moça e a família dela queria porque queria,
aí sim, que as minhas badaladas não fossem em vão.
Hoje nada mais restou da igrejinha. Demoliram-na para construir uma outra
mais bonita, faceira e luxuosa em seu lugar e com ela também se foi o
sino que as mãos de quem digitou este texto tanto acionaram. Contudo,
o seu dolente badalar ainda insiste em ressoar nos meus ouvidos.