A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Os Sons Do Passado

(Raymundo Silveira)

Minha memória auditiva encontra-se sempre tão impregnada pelos sons do passado que quando eventualmente os escuto me sinto transportado de volta para lá, como se tivesse viajado no tempo. Há muitas melodias que me reconduzem à infância – as valsas vienenses que escutava no rádio; as marchas carnavalescas que a orquestra tocava no clube durante os bailes; as marchas marciais que a banda executava todas as noites durante as festas religiosas e os velhos e repetitivos sambas canções, boleros, baiões, xotes e até música americana (“Begin The Beguin” era uma delas), cujas gravações em discos de cera eram postos tão insistentemente para rodar a cada noite no serviço de alto-falantes que, com o passar do tempo, a agulha ia espiar o que havia na outra face do 78 rpm. Entretanto, é curioso: o efeito sonoro que mais desperta as minhas lembranças, hoje não os escuto mais – eram os sons do sino da minha aldeia.

“Não os escuto mais” é modo de dizer, pois os estou ouvindo neste exato momento e o mais incrível é que percebo aquele bimbalhar tão íntimo conforme as ocasiões para as quais ele tivesse especificamente de soar, tais como: o repicar alegre durante as alvoradas das novenas da padroeira, do Santo Chico de Assis e da Senhora de Lourdes do Ceará; as batidas lentas e pungentes com que anunciava a morte de algum fiel aldeão, meu conterrâneo; as pancadas firmes e decididas quando nos chamava para as missas dominicais; os sons compassados e piedosos que transmitiam a mais pura reverência durante a elevação da hóstia que acabara de ser consagrada; o som rítmico e suave que emitia durante a bênção do Santíssimo Sacramento.

A princípio, eu imaginava que não existiria em qualquer outro lugar do mundo um sino cujos bimbalhares soassem tão alto quanto os dele. Ledo e cedo engano! Já escutei muitos sinos por este mudo afora: o histórico ding dong do Big Ben londrino; os não menos famosos carrilhões da Notre Dame de Paris cujos sons, escutados por Victor Hugo, foram projetados no seu personagem Quasímodo; as inconfundíveis badaladas dos sinos da Basílica de São Pedro em Roma; as marteladas aplicadas a cada hora nos vários e imensos sinos do Campanille de San Marco, em Veneza, pelos mouros de bronze; o soar dos sinos da prefeitura de Munique e o seu espetáculo de todos os dias ao meio dia quando se ajunta uma multidão de turistas somente para assisti-lo. Fenômeno parecido também presenciei em plena Staré Mesto Námesti em Praga, pertinho da casa onde Franz Kafka morou durante vários anos. Enfim, por onde passei durante as minhas vagueações pelo velho continente, escutei milhares de decibéis advindos das sonoridades emanadas por egrégios carrilhões, mas nenhum deles ecoou tão docemente nos meus ouvidos como o som do pequenino sino da minha aldeia.

O cubículo onde se escondia era tão pequeno que não ouso chamá-lo de torre. Como sei disto? Ora, simplesmente porque durante algum tempo fui também o sineiro da minha aldeia. A igrejinha que o abrigava era muito humilde não se podendo sequer falar em estilo arquitetônico, pois lembrava mais uma orada semelhante àquelas utilizadas pelos primeiros jesuítas que vieram civilizar os nossos indígenas através das chamadas missões. Quantas vezes subi no seu coro que era representado por um diminuto balcão onde se cantava e tocava órgão durantes os cultos religiosos! Nos fundos deste e exatamente ao centro, subia-se um batente alto e se penetrava no tal cubículo de cujo teto pendia o sino e de dentro dele o badalo que era acionado através de uma corda. Houve um certo dia em que minhas mãos se encheram de calos em virtude de terem permanecido durante mais de duas horas tocando sinal pela alma de um padre supostamente morto num acidente de automóvel, mas cujo corpo nunca apareceu porque, na verdade, ele havia se escafedido da sua paróquia na calada da noite, pois havia comido uma moça e a família dela queria porque queria, aí sim, que as minhas badaladas não fossem em vão.

Hoje nada mais restou da igrejinha. Demoliram-na para construir uma outra mais bonita, faceira e luxuosa em seu lugar e com ela também se foi o sino que as mãos de quem digitou este texto tanto acionaram. Contudo, o seu dolente badalar ainda insiste em ressoar nos meus ouvidos.

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