Foi paixão à primeira vista! Quando a conheci era linda, nova,
diria até que sensual. Mas não se dignou a se interessar por mim.
Todos os dias eu passava na loja onde ela estava somente para vê-la, pois
o desejo intenso me atraía. Foi no meu tempo de estudante. Minha penúria
era tamanha que nunca cheguei muito próximo dela pois, sabia ser impossível
possuí-la. A sua formosura certamente era incompatível com a volúpia
de um acadêmico de medicina pobre que mal podia comprar os seus livros.
Mesmo assim, nunca deixei de paquerá-la, embora não me desse a
mais remota esperança; sequer a esmola de um olhar. Quando me formei,
meu status social subira um pouco, mas não a ponto de ousar possuí-la.
Ela continuava na sua loja, calada, silenciosa, sem se dignar a acenar pelo
menos com um sinal mínimo de esperança.
Fui trabalhar numa cidade do interior, mas nunca a esqueci. Cheguei a perder
algumas noites de sono por sua causa e todas as vezes que vinha a Fortaleza
voltava invariavelmente à loja somente para contemplá-la. Aos
poucos fui galgando os degraus da ascensão pequeno burguesa. Aos poucos
também fui me aproximando mais do objeto do meu desejo, pois sabia que
agora as chances de conquistá-la eram mais favoráveis. Cheguei
até a me iludir achando que ela, afinal, me dera a tal esmola
do seu sorriso. Mera ilusão. Continuava tão passiva em relação
a mim quanto no primeiro encontro. Certo dia, não suportando mais aquela
paixão, decidi enfrentar a minha timidez e tentar conquistá-la.
É incrível como foi fácil! Como que por encanto, ruíram
todos os entraves que eu supunha existir entre mim e ela. Parecia-me que aqueles
anos de timidez, aquela minha paixão recolhida, aquele meu temor de ser
rejeitado, teriam sido pura fantasia da minha imaginação de integrante
da classe proletária. Ela veio para mim fácil, fácil.
E, desde então, até os dias de hoje, nunca mais me abandonou.
Foi sempre minha companheira fiel e prestativa. Motivo do meu orgulho masculino
e até da minha auto-afirmação profissional. Foram poucas
as horas que passamos separados. Dormia ao lado dela; atendia as minhas necessidades
mínimas, era uma fiel companheira e muito mais prestativa do que eu imaginara.
Acompanhava-me ao trabalho, aos passeios, aos restaurantes, ao cinema e fizemos
juntos muitas viagens maravilhosas. Somente na Europa estivemos oito vezes,
e uma no Oriente Médio. Certa vez quase me matou de aflição
ao desaparecer da minha presença em plena Paris, e eu que já havia
assistido àquele filme do Roman Polanski, Busca Frenética,
era só do que me lembrava. Quase vivi na realidade os momentos de angústia
que o ator Harrison Ford viveu na tela do cinema. Foram, de fato, algumas horas
de grande ansiedade. Felizmente, ela surgiu tão subitamente quanto havia
desaparecido. Não quis aborrecê-la com interrogatórios inúteis,
mesmo porque a minha felicidade em reencontrá-la foi tamanha que até
me esqueci disto.
Doutra feita nos perdemos um do outro em pleno Aeroporto de Viena. Foram também
minutos amargos, mas a idéia de que ela não poderia ter deixado
o aeroporto me consolava e me dava alento de esperança. Depois de algum
tempo nos encontramos. Estava a esperar por mim no setor de guarda volumes,
pois sabia que mais cedo ou mais tarde eu teria que passar por lá a fim
de pegar a minha bagagem.
Infelizmente, chegou o dia de nos separarmos. Se fosse detalhar aqui os motivos
que me levaram a ter que deixá-la todos iriam rir de mim, pois são
razões por demais prosaicas para abandonar aquela que sempre me prestou
muito mais do que fidelidade: ofereceu-me praticamente toda a sua vida. Mas
os seres humanos especialmente os homens são cruéis.
Rompem laços afetivos como quem atira fora a camisinha depois de usada.
Tenho vergonha de dizer a razão principal que me levou a esta atitude
cruel, mas vá lá. É que me apareceu outra mais nova, mais
bonita, mais prestativa ou pelo assim eu imagino embora corra
o risco de me decepcionar depois. Todavia estou resignado. Afinal, mais dia
menos dia tudo tem que ter um fim. Pois é, chegou o dia de me separar
dela; daquela que me acompanhou durante nada menos do que trinta e dois anos
e três meses. Agora acho que todos vão compreender o meu ato de
suposta ingratidão: é que aquela minha maleta de médico
que me acompanhou por tanto tempo está velhinha, puidinha, feinha e acabo
de receber de presente uma mais nova, mais reluzente, mais funcional, mais elegante
e mais de acordo com o meu status profissional. Como diria José de Alencar
no final do seu romance Iracema: tudo passa sobre a Terra.