A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Último Adeus

(Raymundo Silveira)

Foi paixão à primeira vista! Quando a conheci era linda, nova, diria até que sensual. Mas não se dignou a se interessar por mim. Todos os dias eu passava na loja onde ela estava somente para vê-la, pois o desejo intenso me atraía. Foi no meu tempo de estudante. Minha penúria era tamanha que nunca cheguei muito próximo dela pois, sabia ser impossível possuí-la. A sua formosura certamente era incompatível com a volúpia de um acadêmico de medicina pobre que mal podia comprar os seus livros. Mesmo assim, nunca deixei de paquerá-la, embora não me desse a mais remota esperança; sequer a esmola de um olhar. Quando me formei, meu status social subira um pouco, mas não a ponto de ousar possuí-la. Ela continuava na sua loja, calada, silenciosa, sem se dignar a acenar pelo menos com um sinal mínimo de esperança.

Fui trabalhar numa cidade do interior, mas nunca a esqueci. Cheguei a perder algumas noites de sono por sua causa e todas as vezes que vinha a Fortaleza voltava invariavelmente à loja somente para contemplá-la. Aos poucos fui galgando os degraus da ascensão pequeno burguesa. Aos poucos também fui me aproximando mais do objeto do meu desejo, pois sabia que agora as chances de conquistá-la eram mais favoráveis. Cheguei até a me iludir achando que ela, afinal, me dera a tal esmola do seu sorriso. Mera ilusão. Continuava tão passiva em relação a mim quanto no primeiro encontro. Certo dia, não suportando mais aquela paixão, decidi enfrentar a minha timidez e tentar conquistá-la. É incrível como foi fácil! Como que por encanto, ruíram todos os entraves que eu supunha existir entre mim e ela. Parecia-me que aqueles anos de timidez, aquela minha paixão recolhida, aquele meu temor de ser rejeitado, teriam sido pura fantasia da minha imaginação de integrante da classe proletária. Ela veio para mim fácil, fácil.

E, desde então, até os dias de hoje, nunca mais me abandonou. Foi sempre minha companheira fiel e prestativa. Motivo do meu orgulho masculino e até da minha auto-afirmação profissional. Foram poucas as horas que passamos separados. Dormia ao lado dela; atendia as minhas necessidades mínimas, era uma fiel companheira e muito mais prestativa do que eu imaginara. Acompanhava-me ao trabalho, aos passeios, aos restaurantes, ao cinema e fizemos juntos muitas viagens maravilhosas. Somente na Europa estivemos oito vezes, e uma no Oriente Médio. Certa vez quase me matou de aflição ao desaparecer da minha presença em plena Paris, e eu que já havia assistido àquele filme do Roman Polanski, “Busca Frenética”, era só do que me lembrava. Quase vivi na realidade os momentos de angústia que o ator Harrison Ford viveu na tela do cinema. Foram, de fato, algumas horas de grande ansiedade. Felizmente, ela surgiu tão subitamente quanto havia desaparecido. Não quis aborrecê-la com interrogatórios inúteis, mesmo porque a minha felicidade em reencontrá-la foi tamanha que até me esqueci disto.

Doutra feita nos perdemos um do outro em pleno Aeroporto de Viena. Foram também minutos amargos, mas a idéia de que ela não poderia ter deixado o aeroporto me consolava e me dava alento de esperança. Depois de algum tempo nos encontramos. Estava a esperar por mim no setor de guarda volumes, pois sabia que mais cedo ou mais tarde eu teria que passar por lá a fim de pegar a minha bagagem.

Infelizmente, chegou o dia de nos separarmos. Se fosse detalhar aqui os motivos que me levaram a ter que deixá-la todos iriam rir de mim, pois são razões por demais prosaicas para abandonar aquela que sempre me prestou muito mais do que fidelidade: ofereceu-me praticamente toda a sua vida. Mas os seres humanos – especialmente os homens – são cruéis. Rompem laços afetivos como quem atira fora a camisinha depois de usada. Tenho vergonha de dizer a razão principal que me levou a esta atitude cruel, mas vá lá. É que me apareceu outra mais nova, mais bonita, mais prestativa – ou pelo assim eu imagino – embora corra o risco de me decepcionar depois. Todavia estou resignado. Afinal, mais dia menos dia tudo tem que ter um fim. Pois é, chegou o dia de me separar dela; daquela que me acompanhou durante nada menos do que trinta e dois anos e três meses. Agora acho que todos vão compreender o meu ato de suposta ingratidão: é que aquela minha maleta de médico que me acompanhou por tanto tempo está velhinha, puidinha, feinha e acabo de receber de presente uma mais nova, mais reluzente, mais funcional, mais elegante e mais de acordo com o meu status profissional. Como diria José de Alencar no final do seu romance “Iracema”: “tudo passa sobre a Terra”.

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