A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Tempo Perdido

(Raymundo Silveira)

Se a lógica das relações humanas é perversa, a da natureza é bem mais desalentadora - é indiferente! A sorte das pessoas ditas normais é não perceberem isto. Consideramo-nos o epicentro do universo, quando não é mais segredo que o nosso planeta não passa de pálido e insignificante pontinho azul no infinito. A vida, na Terra, surgiu por mero acaso. Estivesse ela um pouquinho mais próxima ou mais afastada do Sol, simplesmente aqui não existiriam seres vivos. Pelo menos os mais evoluídos.

Mesmo sabendo disto, muitos de nós ainda acreditamos ter sido criados à imagem e semelhança de um Ser eterno e onipotente, quando a ciência, praticamente, já demonstrou não passarmos de um bem sucedido amontoado de átomos e de moléculas oriundos da poeira cósmica. Tens a pretensão de pensar que este fragmento do sistema solar foi criado para o teu usufruto? Despoja-te desse narcisismo inconseqüente, oh agregado de matéria orgânica perecível chamado Homem. Fica sabendo, desde já, que as baratas - aqueles insetos que tanta repugnância te suscitam - são muito mais perfeitas do que tu se levarmos em consideração atributos biológicos relevantes, tais como a resistência genética às adversidades ambientais.

Valores humanos convencionais como amor, solidariedade, religião, ciência, ética e a própria arte, nada mais seriam do que isto mesmo: meras convenções criadas pelos homens! Por pensar deste modo, e entender que sua própria existência não passava de um trágico absurdo diante do caos que é o universo intergaláctico, foi que Edvard Munch pintou "O Grito". Esta tela é uma obra prima. Mas o que é mesmo aquilo que se convencionou chamar "obra prima", em se tratando de artes plásticas? Há conceitos diversos. Em minha opinião - que obviamente está sujeita a críticas, pois parte de um amador, é todo trabalho artístico que nos "fala"; nos diz alguma coisa e, sobretudo, nos emociona. E mais, atravessa anos, décadas, séculos desempenhando exatamente este papel. Podem existir altos e baixos.

A obra de El Greco sofreu o travo da obscuridade durante quase quatro séculos. Todavia, como se tratava de obras primas, seus quadros, hoje em dia, possuem valor inestimável. "O Grito" tem apenas 105 anos, Contudo, tal como o seu próprio tema já expressa, ele nos angustia, nos desassossega, nos perturba e "grita" tão estridentemente, que o tempo já não importa. Se desaparecesse hoje, já haveria cumprido sua função, ou seja, o autor já teria dado - e muitíssimo bem - o seu recado. Munch é o "Van Gogh" norueguês. Apenas estes dois artistas talvez já fossem suficientes para justificar a existência da escola Expressionista. Os temas prediletos de Munch são o amor, a angústia e a morte. Quando visitei a Galeria Nacional, em Oslo, conheci, não apenas "O Grito" como também "Angst" (angústia), "A Frisa da Vida" e "Noite Branca", entre outros. Estas telas nos inquietam não apenas pela expressão atormentada das figuras, como também pela tonalidade escura de suas cores que sugerem tristeza, sofrimento, luto. Ou seja, dão conta de nossa finitude. Munch nasceu de uma família de destaque por suas contribuições à política e à cultura norueguesa. Era o segundo de uma prole de cinco filhos. Entretanto não fugiu à saga infeliz dos órfãos de mãe, pois a sua morreu de tuberculose quando ele tinha apenas cinco anos de idade

Nunca se deveria abrir mão da dialética como instrumento de debate para se chegar à verdade. Nem também da tese de que o sentido fundamental da vida é CRIAR. Por “CRIAR” entendo construir qualquer coisa que venha tornar mais agradável, mais segura, em síntese, mais feliz a existência humana. A arte é apenas uma das formas pelas quais este processo criativo se manifesta, mas não é o único. Quando uma humilde auxiliar de enfermagem descobre uma maneira menos dolorosa de aplicar uma simples injeção, ela não está sendo menos CRIATIVA. Sob esse aspecto, tanto a vida de Edvard Munch quanto a da enfermeirinha têm muito mais sentido do que a de uma multidão de “cristãos” bem nutridos e bem nascidos que batem no peito a cada momento anunciando aos quatro ventos a sua pretensa religiosidade.

Nunca Albert Einstein esteve tão coberto de razão quando declarou: "O homem que diz que sua vida não tem nenhum sentido é, não apenas um sofredor, mas também indigno de viver". A vida, portanto, tem sentido, sim! O sentido da vida é CRIAR! Pouco importa recompensas ou castigos; felicidade ou amarguras; esperanças ou desilusões; fortuna ou penúria. Nem se esta vida é efêmera ou continua após a morte. Viver em desacordo com este propósito me parece nada mais do que puro tempo perdido.

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