A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Para Quem Gosta De Levar Vantagem Em Tudo

(Raymundo Silveira)

Pela quantidade de vezes que você foi, a passeio, a Brasília ou à Bahia, sou capaz de traçar um perfil da sua personalidade. Bem, talvez esteja exagerando, mas se você costuma viajar para o exterior, sem dúvida estarei apto a revelar as suas preferências culturais; basta me dizer quantas vezes foi a Nova Iorque e a Paris. Sei também o que você está pensando neste exato instante: “Este cara é um maniqueísta! Claro que gosto de ir tanto a Brasília quanto à Bahia, do mesmo modo como às vez prefiro ir para a Big Apple e outras, para a Cidade Luz. Desculpe-me, mas está redondamente equivocado. Consciente ou inconscientemente há uma delas pela qual tem predileção, porque viajar para Nova Iorque em vez de ir a Paris é tão diferente quanto gostar de beisebol no lugar de futebol; comer peixe em vez de carne; preferir o Natal ao Reveillon; a Semana Santa ao Carnaval. Para ser mais objetivo, seria como – se isto fosse possível – escolher viajar na máquina do tempo para o futuro ao invés de voltar ao passado. Portanto, não há como fugir a esta opção preferencial pelo novo ou pelo velho.

Com efeito, caminhar pela Times Square equivale a correr em direção aos séculos vindouros, enquanto andar pelos Campos Elíseos em direção à Praça da Concórdia e de lá, para a Ile de la Cité, é como passear pela História. Obviamente, a maioria das pessoas gosta de ambas as situações, mas seria ilusão pretender achar que estes gostos são absolutamente iguais. Nunca serão! Há vantagens entre um e outro comportamento? Aqui, sim, uma resposta afirmativa ou negativa seria nada mais do que puro maniqueísmo. O que é vantagem? O que é desvantagem? Obviamente a sua vantagem pode ser a minha desvantagem e vice-versa. A menos que sejamos daqueles que querem levar vantagem em tudo, não é mesmo?

Quanto a esta questão, quem escreve este texto (ou seja, eu; que escreve “quem escreve este texto” apenas por falsa modéstia ou para não ser acusado de só olhar para o próprio umbigo) é radicalmente inclinado para o lado das antiguidades. É paradoxal: detesto o meu passado pessoal, mas adoro o pretérito da humanidade. Sempre fui o último consumidor de inovações tecnológicas em troca de me meter num asa dura apenas pra caçar dinossauros. Se não pudesse vender e com o dinheiro apurado viajar, não trocaria jamais dois meses em Lisboa por dezenas de casas na praia; um mês em Paris por dois Honda zero quilômetro; uma semana na Grécia por quatrocentos DVDs.

Um antitabagista radical abordou certa vez um fumante inveterado, que se encontrava a fumar charutos à calçada de um edifício de vinte andares, com a seguinte lengalenga: “Estive fazendo contas. Desde o dia que passei por aqui pela primeira vez até hoje contei quantos charutos o senhor fumou e cheguei à conclusão de que se não os tivesse fumado a quantia economizada seria suficiente para comprar um edifício igual a este!” “O senhor fuma?” Retrucou o fumante. “Não, claro que não. Jamais fumei!” “Possui quantos edifícios iguais a este?” “Nenhum!” “Pois eu fumo, este edifício é meu, aqueles que estão às suas costas também me pertencem e possuo mais de duas dúzias de outros espalhados por toda esta cidade!” É uma história interessante e encerra uma belíssima lição muito bem aplicada a quem se mete em campanhas contra o fumo, contra o álcool e outros vícios alheios. Porém jamais se aplicaria a mim. Primeiro, porque não fumo; depois porque se eu tivesse assim tanto dinheiro de nada iria me servir ter edifícios. Não haveria como morar neles; nem como administrá-los, pois viveria de arribada para o país das velharias.

(24/04/2004)

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