A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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As Fases Ocultas da Lua

(Raymundo Silveira)

O meu coração, mas não somente ele, também outros órgãos não menos nobres do meu ser adolescente e apaixonado devem muitos favores à Lua, menos pelo que a sua luz de plenilúnio iluminava, mas pelo contrário, quando ela, tão discretamente, se escondia. Devo, portanto, muito mais à Lua pelo que ela não foi, diversamente do que costumava suceder com a maioria dos outros jovens amantes. Durante toda a minha adolescência nunca houve luz artificial na minha aldeia. O meu primeiro amor, por conseguinte, foi quase todo envolto pelas trevas – benditas trevas -, exceto quando a Lua não suportando conter a sua inveja, decidia aparecer para testemunhar aquele tórrido romance.

Quantas vezes, querida Lua, ela e eu maldizíamos a tua indiscreta curiosidade e ficávamos contando nos dedos, não apenas os dias, mas até as horas que ainda faltavam para tu te esconderes. Há quem diga que naquele tempo o modo como se amava um par de jovens era um preconceito ou um tabu, mas eu prefiro chamá-lo de divina falsa pudicícia. Enquanto tu expunhas ostensivamente a tua curiosidade invejosa, não imaginas a aflição que a intensidade do desejo reprimido desencadeava nos nossos corações, mas quando tu seguias para o teu compulsório esconderijo, não eras sequer capaz de imaginar a vastidão das chamas que avultavam de dentro de nós dois e abrasavam como o rescaldo de um incêndio infinito aqueles dois corpos desabrochando para o amor.

Sei que corro o risco de estar a ser agora alvo de ironias, mas tenho de confessar: lembro-me bem, amada Lua, ela era um pouquinho menos tímida do que eu e, naquela noite no banco da pracinha, quando o teu indiscreto interesse voyeur encontrava-se no auge, ela não suportando mais tanta vontade, tomou a minha mão e pôs sobre os seus lindos e macios seios. E eu chorei. Ainda hoje sinto arrepios quando me lembro daquele ato tão alucinante quanto audaz para os padrões do nosso tempo e que hoje não representaria muito mais do que um banalíssimo shake hands entre dois enamorados.

Pelo calor que vistes emanar daquele ato quase inocente, certamente deverás presumir o tamanho das labaredas invisíveis que fluíam dos nossos corpos e subiam aos céus durante toda a tua fase oculta. A intensidade de tudo o que acontecia quando partias para o teu tão ansiado retiro, amada Lua, não poderia nunca ser avaliada sequer pelos saltos dos nossos corações, pela temperatura das nossas epidermes em brasa, pelos tremores das nossas coxas, pela avidez dos meus dois lábios e pela sofreguidão de todos os lábios dela; nem mesmo pela volumosa umidade cristalina que brotava das nossas entranhas e inundava o âmago das nossas roupas.

(21/04/2004)

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