A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O Alarido Do Silêncio

(Raymundo Silveira)

Quando trabalhava num posto médico daquele bicho que não sei dizer o nome, pois já foi batizado e rebatizado pelo menos uma dúzia de vezes e hoje atende pela graça de SUS(to), havia uma sala onde todos os médicos se reuniam depois de atenderem os clientes, aguardando a hora do término do expediente. Não tinha essa denominação, mas não ficava nada mal se lhe chamassem de fofocódromo, pois era nada mais, nada menos do que isto mesmo. Ali se conversava sobre todas as coisas possíveis e impossíveis de acontecer. Os temas variavam desde as principais notícias do dia, passando pela influência do pum de um mosquito sobre o efeito estufa e ia até a cor, o tamanho e o modelo preferido da calcinha da irmã da tia do cunhado do motorista do presidente. Que presidente? Qualquer presidente, daquele inclusive. Ou, principalmente.

Alguns tagarelavam mais, outros papagaiavam menos, mas ninguém se mantinha calado. Ou quase ninguém, porque havia um colega cujo laconismo era tamanho que quando algum colega lhe pedia, "Esculapinho de Deus, diz alguma coisa!", ele reagia assim: "Disse". E pronto! Disse mesmo. Ou falar a palavra disse não é dizer alguma coisa? Porém, o que mais me fazia admirar nele era a peculiaridade do seu silêncio - era ensurdecedor. Alguns conversavam muito alto, outros o faziam mais baixo e todos escutavam em maior ou menor intensidade, mas o Esculapinho falava mais alto do que todos juntos e nós concentrávamos nele a nossa atenção a imaginar o que se passaria pela cabeça daquele doutor. Estaria concordando com aquilo que acabara de ouvir? Discordaria completamente? Concordaria em parte? Zombaria das idiotices daquele bando de tagarelas? Ou, por outro lado, sequer estaria prestando atenção no que se dizia? Nunca ninguém sabia! E este ninguém sabia, ao transformá-lo no foco do interesse geral, funcionava como um brado. "Qual será a deste cara?" Esculapinho, portanto, gritava muito e o seu grito era o alarido do silêncio.

Em outros casos, aquele grito, às vezes, pode também funcionar como a mais eficiente das armas de defesa. Isto sucede quando alguém decide agredir outra pessoa e esta responde como se fora um moinho de vento contra o qual o Quixote do Saavedra investia. Quando se vê desempenhando papel semelhante ao do fidalgo cavaleiro de triste figura, o agressor se sente a mais ridícula das criaturas e, não raramente, sucumbe afogado na baba venenosa do próprio ódio. Já assisti a vários destes espetáculos, mas houve um deles especialmente notório, pois foi levado às últimas conseqüências. Sucedeu numa mesa de bar. Depois de provocar a sua vítima durante cerca de uma hora e esta não falar sequer um monossílabo, o agressor partiu para as vias de fato e teve de ser contido pelos circunstantes. Quando lhe perguntaram o motivo de tanto ódio, ele foi sincero: "este f.d.p. não responde nada. Está tentando me fazer de palhaço".

Contudo, o alarido do silêncio não se restringe aos seres humanos. Pelo contrário, certos objetos gritam mais do que o mais escandaloso dos hooligans durante uma partida final do campeonato de futebol europeu. Contam que num certo dia, Santo Agostinho se irritou tanto com o grito silente de uma rosa a ponto de vergastá-la com a ponta do seu báculo. Segundo ele o alarido silencioso daquela flor o irritou tanto que ele não pôde suportar. "O que ela dizia, senhor bispo?" Acudiu um assessor. "Dizia não é bem o termo - teria respondido o santo - ela bradava insistentemente uma verdade que há muito tempo eu já conheço: 'Deus existe, Deus existe, Deus existe!' ".

Quanto a mim as gritarias silenciosas que mais me chamam atenção são as dos livros, dos museus, dos meus próprios pensamentos e as dos cemitérios. Praticamente tudo o que aprendi até hoje, embora sendo muito pouco, devo ao alarido do silêncio dos meus livros. Levado pelas asas velozes dos brados silenciosos dos museus, viajei inúmeras vezes, não apenas no espaço, mas principalmente no tempo. Graças às inúmeras e demoradas visitas que tenho feito ao Museu Britânico, viajei tanto para o passado, que chego mesmo a duvidar que tenha sido verdadeiro. Em Outubro de 2002 voltei 5000 anos no tempo, graças aos clamores calados daqueles tesouros. Meus pensamentos também costumam gritar tanto que chegam a me assustar, não apenas por causa do seu tom elevado, mas também pela diversidade das perguntas e das respostas que elaboram.

Já o barulho ao mesmo tempo tumultuado e mudo dos cemitérios não se cansa de me repetir: "Vê, eis aí aqueles que já foram como tu és agora. Centenas deles moram aqui há muito mais tempo do que tu em todas as casas onde já residiste. E vão morar por muito mais do que na superfície da Terra aqueles que ainda irão nascer daqui a cem, duzentos, trezentos anos. Então, por que tu te preocupas tanto com o amanhã? Por que dás tanto valor aos bens materiais? Por que te irritas até à fúria quando alguém colide com este monte de ferro e de borracha a que chamas automóvel? Para que verificas quase todos os dias no computador quanto rendeu a tua poupança? Por que te afliges, não apenas pelo dinheiro que perdeste, mas até mesmo pelo que deixaste de ganhar? Para que te preocupas tanto com a tua aparência a ponto de gastar tempo e o maldito dinheiro - que poderia estar alimentando uma boca faminta - em supérfluos gabinetes cosméticos? Qual é a razão desta vaidade louca que te leva a buscar compulsivamente posse, prestígio e poder?" Trata-se de uma algazarra tamanha que raramente passo por perto de um deles. Aquele clamor de vozes me perturba demais. Demais.

(30/03/2004)

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