A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Ela

(Raymundo Silveira)

Não posso viver sem ela; não viveria e nem haveria de querer viver se ela não existisse. É tudo para mim: foi e será para sempre a minha mais fiel e eterna companheira; enfim, nunca ficamos e nem poderíamos ficar longe um do outro, embora eu desconfie que ela pudesse sobreviver sem mim; temo, portanto, que a recíproca não seja verdadeira. Para mim, porém, trata-se de uma questão de vida ou de morte. Jamais estivemos separados sequer por um único dia. Necessito dela quase tanto quanto do ar que eu respiro. Já foi quente; hoje é fria, mas eu a quero assim mesmo. Por incrível que pareça se torna até mais gostosa neste estado, sobretudo quando se entrega passivamente, frígida, mas sem reclamar. Então, para que eu haveria de querê-la quente? Já vi pessoas da minha idade, e até mesmo muito mais jovens, se darem mal quando eventualmente escolhem a sua neste estado, pois ela poderá se tornar perigosa, machucar o seu parceiro e, em casos extremos, até mesmo matá-lo.

Hoje, quando a possuo, mesmo fria como é, nunca deixa de tratar de ajudar a me satisfazer com o seu hálito gostoso e com uma leve fragrância de hortelã, mas mesmo quando não está disposta a isto, nunca deixo de me satisfazer plenamente quando nos relacionamos. O único inconveniente deste comportamento excepcional é que ela sabe que este é o meu ponto fraco e se torna exigente. Quando, por outro lado, não me preocupo com estes pormenores banais, ela se oferece a todo instante, em qualquer lugar, a qualquer hora do dia ou da noite, sempre que me dá vontade, sem reclamar e sem exigir coisa alguma em troca.

Raramente acontece de não encontrá-la e quando isto, eventualmente ocorre, o desejo e o sofrimento são insuportáveis. É o tipo da necessidade que nunca posso satisfazer solitariamente, por mais que desejasse. Nestas ocasiões saio à sua procura e, se não a encontrar imediatamente, sofro demais. Se demorasse muito poderia, talvez, chegar até à loucura. Neste exato momento eu a estou desejando. Pior que isto: estou a lhe desejar daquela maneira sofisticada, saborosa, com o seu hálito de hortelã - ainda que gélida -, quando ela se torna cheia de caprichos e chega até a querer o meu dinheiro, a sacana. Ainda bem que tenho um bom estoque de Perrier na geladeira.

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