A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Os Sabores Do Passado

(Raymundo Silveira)

"O cru e o cozido condicionaram estruturas sociais de comportamento em todos os grupos humanos" (Claude Lévi-Strauss)

Toda quarta-feira na minha casa era dia de torrar e pilar café. Para mim também era um dia especial porque o mesmo pilão onde aquele era socado servia também para fazer paçoca e, para que a mão de obra fosse quase convergente, esta era pisada em primeiro lugar, pois o recôncavo do pilão só voltaria a se prestar para esta finalidade, depois de muito tempo de depuração. Enquanto isto eu não saía da cozinha, pois adorava paçoca e de vez em quando a piladora enchia as minhas mãos. Tratava-se de um prato típico da cozinha nordestina preparado com carne-de-sol previamente cozinhada, e que, depois de picada era frita ou refogada em gordura bem quente, e socada com farinha de mandioca e muita cebola vermelha. Eu gostava de comê-la também com arroz e com banana.

Lembro-me perfeitamente de que a mulher encarregada de pisar a paçoca usava um longo e pesado bastão de madeira mais dilatado nas duas extremidades a que chamavam mão de pilão e eu entendia mandipilão, mesmo porque aquele brutal socador se parecia com tudo neste mundo, menos com uma mão. Recordo também que a cada socadura ela expirava forte produzindo um ruído semelhante a um gemido surdo, cuja onomatopéia soava mais ou menos assim: hum, hum, hum. Somente depois de pisada toda a paçoca, o pilão estava liberado para receber o café.

A maioria dos pratos típicos da culinária brasileira é derivada de cada um dos continentes de cujas raças se formou o nosso povo. O precursor da feijoada teria sido o cassoulet francês que após atravessar os Pirineus foi enriquecido com os embutidos da cozinha portuguesa até se transformar na nossa velha e gostosa feijoada completa que só poderá ser assim chamada se contiver o feijão preto, a couve, o pirão, a laranja, o torresmo, o bacon e muita carne, pés, orelhas, e toucinho de porco defumados. O vatapá, o caruru, o xinxim de galinha, o acarajé são originários da áfrica e praticamente ficaram confinados na Bahia. O cuscuz, a tapioca, a canjica, a pamonha e praticamente todos os derivados do milho, da mandioca e de outros tubérculos como a batata doce e o inhame são de procedência indígena. Mas a paçoca é um dos raríssimos pratos genuinamente nordestinos. Na minha casa, a principal operária desta manufatura doméstica e hebdomadária chamava-se Joaquina e, até onde posso alcançar, sua especialidade principal consistia em torrar e pilar o café. Enquanto ela processava a torrefação, era a cozinheira quem se desincumbia de socar a paçoca.

Toda a operação custava uma manhã inteira de trabalho. O fogão consistia numa fornalha de alvenaria onde se punha a lenha e se ateava fogo, resultando uma espécie de fogueira junina elevada, cujo processo de alimentação não requeria esforço demasiado - bastava pôr mais lenha e abanar com uma ventarola de palha de carnaúba; contudo não era tão fácil dar início à combustão. Se o feixe de lenha já estivesse enxuto a etapa de desencadeamento se processava sem maiores transtornos, embora lentamente: bastava despejar meio litro de querosene sobre ele, atear fogo e assoprar durante um bom quarto de hora. Mas se estivesse ainda verde a madeira, nem milhares de sopros de algum Gulliver conseguiria acender o lume o qual continha também uma chaminé para o escoamento da fumaça. Não sei se a minha curiosidade quanto a este fenômeno resultava de uma ingenuidade de criança ou de alguma primitiva capacidade de observação, mas sempre comparava o assoprar daquele fogo pra acender, ao assoprar duma lamparina, pra apagar e achava aquilo muito paradoxal. Só sei que levei esta estranha contradição à consideração do meu pai, mas ele nunca foi capaz de satisfazer plenamente aquela minha curiosidade infantil.

O cheiro do café sendo torrado se estendia num raio de centenas de metros, graças à fumaça que saía pela chaminé. Se uma pessoa que hoje tem menos de quarenta anos entrasse ali e lhe dissessem se tratar de uma cozinha, ela certamente interpretaria aquilo como se fosse uma piada. O teto era formado por um telhado completamente recoberto de fuligem. O fogão de alvenaria continha uma superfície de ferro a que chamavam chapa e lembrava mais um jazigo perpétuo se não fosse pela fogueira crepitando na sua superfície. O forno era também de alvenaria, mas separado do fogão; tinha a forma de um hemisfério emborcado e, quando estavam construindo a cúpula do Senado Federal em Brasília, era somente ao formato do forno da cozinha da minha casa que eu conseguia associá-lo. Só era utilizado em dias de festas, pois era nele que se assavam os bolos, os perus, as lingüiças, os coxões de porco, os pernis de cabrito.

Às vezes me impressiona tanto a velocidade da evolução tecnológica durante os últimos cinqüenta anos que quando vejo funcionar um forno de microondas tenho a sensação de que tudo isto que acabei de descrever sucedeu comigo noutra era: na Idade Média, na Grécia Antiga ou no Egito. Ou, quem sabe, numa vida passada. Todavia, nunca alguém haverá de me convencer de que ainda provarei algo tão delicioso quanto os de comeres e de beberes preparados na cozinha da casa da minha meninice.

(01/04/2004)

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