A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Xô Galinha

(Raymundo Silveira)

Tinha outro nome, mas eu nunca soube qual era. Chamavam-na xô galinha e não adianta de nada me perguntarem por que, pois não direi agora, se não suprime logo o interesse dos eventuais leitores e todo escrevinhador gosta de ser lido do começo ao fim. Seria como passar uma novela na TV começando do ultimo capítulo. Prometo dizer o porquê deste nome, porém só mais adiante. Conheci-a durante um banho de rio daqueles das Semanas Santas da minha aldeia e ela quase não me deixava mais voltar pra casa. Era suave como veludo, quente como café recém-coado e mais deliciosa do que quaisquer outras espécies de eau de vie que encontrei por este mundo de meu Deus e que tiveram o privilégio de adentrar estas entranhas delas tão carentes. Já bebi, portanto, de todos os tipos de destilados que encontrei pelos quatro cantos deste planeta por onde andei. Desde a genebra suíça, passando pela grapa italiana e a russa stolnaya especial, uma vodka deliciosíssima composta de álcool de trigo, água preparada, extrato de cereais, xarope de açúcar e vanilina. Nenhuma delas chega sequer aos pés da xô galinha.

Aquela delícia de álcool era fabricada na Serra da Ibiapaba, mais especificamente na Viçosa do Ceará; particularmente tenho a impressão de que o nome da cidade foi dado por algum consumidor embevecido pelo sabor e pelos efeitos prodigiosos dos vapores da xô galinha porque, de fato, somente alguma coisa muito viçosa poderia produzir algo tão maravilhoso. Sempre preferi consumi-la pura, sem nada para lhe tirar o gosto, pois querer fazer isto seria o mesmo que mandar restituir um diamante à sua forma bruta através de uma lapidação invertida. Nunca bebi a xô galinha como quem entorna uma abrideira, mas somente depois de lhe sentir o buquê e bochechá-la – do mesmo modo como se faz com os vinhos Romané-Conti, Chateau Lafite e outros néctares celestiais. Depois de umas duas ou três talagadas de meio copo cada uma, sentindo aquela queimação deliciosa e reconfortante descendo pelo peito e depois para o estômago, aí sim, será a vez de fazê-la rebater o sabor, a quentura e a banha das feijoadas e das tripas.

Ambas são os meus pratos prediletos. Se estivesse sentindo muita fome, chegasse num boteco / restaurante onde numa mesa fumegasse um tacho de feijoada e na outra um panelão com tripas, buchos e mocotós, e me mandassem escolher, acho que teria o mesmo destino daquele burro da fábula que - após sete dias sem comer nem beber - ofereceram-lhe capim e água ao mesmo tempo. A alimária sucumbiu de fome e de sede, por não ser capaz de se decidir para onde seguir primeiro. Mas vamos supor que eu esquecesse a outra e seguisse direto para a mesa da feijoada. Meu prato teria de ser bastante fundo. Primeiro espalharia uma camada de pirão escaldado pegando fogo; sobre esta uma só de orelha de porco, a seguir uma outra apenas contendo feijão, por cima dele uma camada de couve, a seguir outra de carne de charque, mais uma de pirão e, finalmente, enfeitaria a superfície com uma demão de torresmos bem crocantes. Aspergiria sobre tudo aquilo uma ou duas colheradas de suco de pimenta malagueta vermelha e pronto. Estava preparado aquele meu tarrabufado o qual iria se misturar ao que restasse da xô galinha, porque uma boa parte dela já teria se espalhado pelo sangue e subido pra cabeça. Tinha de devorar aquele angu delicioso bem depressa, enquanto o pirão escaldado ainda fumegasse, pois era ele quem garantia a quentura das outras vitualhas, do contrário estas virariam um sebo de grudar no céu da boca e não tinha cão que agüentasse comer.

O nome xô galinha? Reza a lenda que partiu de um carioca que se dizia forte pra beber pinga. Sentou-se a uma mesa; pediu um litro da dita (que obviamente ainda não tinha este nome), bebeu tudo em menos de duas horas e, ao tentar se levantar, não conseguiu se manter em posição militar como ele bem que tentou; pelo contrário, saiu da bodega do Chico Raimundão agachado, com os braços abertos e cai não cai. Quem o visse à distância imaginaria que ele estivesse a tanger frangos, galinhas, patos, perus, capotes e outros bichos de terreiro.

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