A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Servidão Humana

(Raymundo Silveira)

É curiosa e ao mesmo tempo patética a maneira pela qual os indivíduos acumulam e perdem posse, prestígio e poder perante os demais; trata-se de algo instintivo. Quando alguém se torna potencialmente capaz de ser útil, promover, destacar e prover materialmente outro alguém, este propende a cercar aquele de homenagens e louvores. Porém, quando esses atributos se acabam ou se tornam evanescentes, sucede o inverso. Aparentemente, se trata de um fenômeno óbvio e banal; e é mesmo. Contudo, se torna cômico quando observado à distância.

Possuo uma vasta experiência pessoal que pode ser utilizada para demonstrar, na prática, esta atitude a qual, pelo menos para mim, longe de ser vulgar, considero uma das maiores fraquezas humanas ao lado da hipocrisia - sua parenta próxima. Antes de comentar as minhas próprias vivências e observação dos fatos, gostaria de citar este trecho do médico e memorialista Pedro Nava - meu eterno mestre não apenas em medicina, mas, principalmente em vidensina. "{Agradam nauseantemente até terem força para morder e envergadura para devorar. Conheci o jogo e posso denunciá-lo aos que estiverem interessados em se defender do rabo-de-arraia. Você aí, chefe de serviço como eu fui que recebe pelo Natal e pelo aniversário, três garrafas de uísque estrangeiro. Quando as botelhas diminuírem para duas, atenção! Para uma, alerta! Que teu presenteador está começando a se sentir seguro. Quando este uísque for substituído por oferta de vinho nacional - manda embora o furbo ou prepara-te para cair, o que acontecerá fatalmente quando receberes de festa só votos telefônicos. Faz como o grande cirurgião que despedia os assistentes que já podiam operar um apêndice salta-caroço, ou o parteiro que dava bilhete azul aos que já eram capazes de fazer um fórceps baixo.}"

Comigo não foi tanto assim, apesar de ter visto também escassearem os meus presentes. Ou melhor, foi sim; foi pior, até. Mas fiquei muito distante de ter sido acometido pelo ressentimento que invadiu o grande Nava. Ajudei a criar uma Escola de Enfermagem e fui o seu primeiro diretor durante onze anos. Notem que este cargo não é, de nodo algum, tão importante como muita gente imagina. Pois, mesmo assim, durante aquele período só não fui carregado numa liteira porque não me deixei conduzir, mas, dificilmente deixavam de pagar minhas despesas em restaurantes; em qualquer repartição pública aonde chegava corria meia dúzia de funcionários para me atender; o preenchimento dos meus formulários de declaração do imposto de renda era disputado a tapas pelos contadores e por aí. Minha casa era freqüentada por políticos, juízes, professores universitários. Em contrapartida, na época dos vestibulares me via obrigado a ficar de quarentena durante todo o período de aplicação das provas, tamanho era o assédio de amigos ou simplesmente conhecidos entre os quais me sentia muito constrangido em tratar de assuntos relacionados aos exames. O mais surpreendente é que as pessoas que me abordavam não sentiam o menor pudor em interceder por algum candidato, reivindicar melhores notas e até em pedir cópias dos testes. Pois quando deixei a direção da escola até bons dias, boas tardes e boas noites me foram sonegados.

Bem, esta foi a minha própria experiência, mas tenho também observado fatos semelhantes que aconteceram em muitas outras situações da vida cotidiana. Se fosse citar aqui um por um para ulterior publicação, resultaria num volume tão espesso quanto o de um catálogo telefônico das grandes capitais, por este motivo irei citar apenas aquele que primeiro me acudiu a memória. Num dia de domingo de 1970 eu estava de plantão no Hospital de Pronto Socorro de Fortaleza e era um pica fumo. Para aqueles que ainda não estão atualizados com esta nomenclatura, pica fumo está para os médicos, assim como foca está para os jornalistas, ou seja, trata-se de um acadêmico ou médico recém-formado inexperiente. Eu sentia que era aquilo que todo rico ou poderoso pensa que é: o chefe da Terra, do Inferno e do Purgatório (do Céu, não, porque aí seria meio muito, mas quem sabe, com um pouco mais de esforço chegaria lá); o dono de todo o gênero humano; julgava-me capaz de arrastar de cambulhada os outros animais e as plantas e achava - também como os ricos e os poderosos - que todas as pessoas só estariam no mundo para me puxarem o saco.

Pois aconteceu, sim e foi a maior e mais útil lição de humildadologia práticaa a que já assisti em toda a minha vida, embora - graças a algum deus e a Nossa Senhora do Bom Parto - não tenha sido eu a cobaia. Na qualidade de pica fumo, fui apenas testemunha. Antes, convém reiterar que estamos em plena ditadura militar quando um simples cabo do exército detinha mais poder do que qualquer deputado federal de hoje em dia. Pois bem, todos os maiorais da equipe médica se encontravam coçando os olhos na sala de repouso. A porta de acesso ao aposento era de vidro e, através dela, pude divisar a figura de um senhor de cerca de sessenta e poucos anos, baixo, magro, não muito bem vestido e calçando sandálias havaianas. O cidadão tentava entrar, mas um segurança o impedia.

Os manda-chuvas da equipe fingiam não perceber que aquele guarda tentava inutilmente falar com o chefe a fim de pedir permissão para fazer entrar o cidadão. Até que enfim ele falou mais alto: "Doutor, posso mandar entrar esta pessoa?" "Não vês que estou ocupado, ó Geraldo. Que ele espere mesmo lá fora!" "Doutor - insistiu o segurança -, ele diz se tratar de um caso de emergência. Encontra-se acompanhado de um rapaz sentindo fortes dores". "Já disse, só posso atender quando terminar". Neste momento, o cidadão empurrou a porta delicadamente, mas com firmeza e entrou. Todos interromperam subitamente o papo e ficaram atentos. "Não queria ter de apelar para isto - falou -, mas infelizmente não tenho alternativa. Odeio a expressão 'sabe com quem está falando?' Porém, como se trata de um caso de sofrimento intenso de um ser humano, apesar de me sentir constrangido, tenho de me identificar: sou o general Humberto Ellery, vice-governador deste Estado!" A correria foi alucinante e não houve ponta de dedo do doente onde não tivesse um doutor querendo examinar.

Reconheço que isto é um comportamento tipicamente humano, mas não sei por que, todas as vezes que testemunho um destes sinto vontade de vomitar.

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