O primeiro livro que li na minha vida foi "Dom Casmurro". De uma só
vez. Comecei a leitura às oito da noite e só deixei de ler quando
terminei, às oito da manhã seguinte. Doze horas ininterruptas.
Tinha 10 anos de idade.
Quando estudava no seminário li Vieira, Camões, Garret, ou seja,
os chamados autores clássicos da língua portuguesa. Desde então,
leio todos os dias: úteis, inúteis, durante o carnaval, entre
uma consulta e outra, entre uma operação e outra. Quando era estudante
do primeiro ano de medicina carregava, numa das mãos a minha latinha
de material para cortar cadáveres, na outra um livro famoso.
Foi nesta época em que li Flaubert, Eça, Stendhal, Dostoiewski,
Tolstoi, Balzac, Camilo; para resumir, a macharia toda. Como tivesse sido o
ano da morte de Somerset Maugham (1965) li "Of Human Bondage" por
causa dos comentários favoráveis que saíam na imprensa
sobre este autor. Entre um esfolamento de pescoço e um talho de barriga,
misturava formol, banha de defunto e um exemplar deste livro que ainda hoje
possuo todo ensebado. Mais tarde, ao lado dos meus tratados enormes das bexigas,
dos cavalos de crista, dos esquentamentos, das lombrigas e dos corrimentos,
nunca deixei de conduzir também o meu Zola, Dumas, Wilde, Malraux, Gógol,
Goethe, Melville, Cervantes, Thomas Mann, Joyce, Sinclair Lewis, Fitzgerald,
Hemingway, Manzoni. Da fase imatura de Machado, li tudo; mas apenas uma vez.
Já Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas,
Memorial de Aires, Quincas Borba, Esaú e Jacó e muitos contos,
perdi a noção das vezes que os li. De Eça de Queiroz tenho
tudo, li e reli tudo. Ainda hoje releio quase todas as noites; salteadamente.
Sei que poucos vão acreditar nisto, mas lia até quando me encontrava
de porre. Pois sabem quantos livros escritos por mulheres eu já li de
capa a capa, do princípio ao fim? NENHUM! Tenho vergonha de dizer isto,
mas pelo menos estou sendo honesto. Claro que li um pouco das irmãs Brontë,
de Virgínia Woolf, de Colette, de Margueritte Yourcenar de Raquel de
Queiroz, de Clarice Lispector, de Lígia Fagundes Teles, de Marina Colassnti,
e de outras mais que não lembro agora. Mas apenas alguns trechos ou artigos
e crônicas. Contudo, um livro inteiro, completo, de cabo a rabo? Jamais!
Afonso Arinos de Mello Franco dizia que praticou algumas coisas na vida que
o fizeram se arrepender, mas nada que o envergonhasse. Pois comigo dá-se
exatamente o inverso: não lembro de ter feito nada de que me arrependesse,
mas, mesmo não tendo culpa, me envergonho de que durante a formação
ou deformação que me deram não estou bem certo ainda
nunca tivesse lido nada importante escrito por uma mulher. E o pior é
que aquilo passava despercebido como se fosse um fato banal; como se fora uma
atitude tão insignificante tal como só escovar os dentes com um
dentifrício de determinada marca ou como se apenas aspirina servisse
para curar dor de cabeça.
Em síntese: aquilo era mais uma conseqüência da minha vergonhosa
educação machista. Era algo assim como se mulheres fossem seres
subumanos e, portanto, não seriam capazes de pensar e de escrever. Daí
muito gente estranhar por que eu detesto aquela versalhada bonita, mas ultramachista
de Víctor Hugo. Naquele poema ele diz implicitamente isto: que as mulheres
não pensam. Quando inseri alguns versos por mim perpetrados de entremeio
aos dele, houve quem não me entendesse. Foi preciso divulgar uma nota
de esclarecimento da qual cito um pequeno trecho:
Hugo: "O homem é um templo"
Eu: Que o pastor Jim Jones construiu nas Guianas;
Hugo: "A mulher é o sacrário"
Eu: Violado por homens tarados.
Hugo: "O homem pensa"
Eu: Que é o dono do mundo
Hugo: "A mulher sonha"
Eu: Logo não pensa
Como se pode perceber, meus bedelhos não passam de ironias. O poeta
vem comparando o homem e a mulher a várias coisas. Sempre declarando
que o homem age pela razão e a mulher, não. Quando ele diz: "O
Homem pensa" e logo a seguir contrapõe: "A Mulher Sonha",
ele está dizendo implicitamente que só o homem pensa. E como a
mulher, segundo ele, "somente sonha", deduz-se outra vez que quer
dizer que ela não pensa mesmo. Portanto, o que quis dizer (e de fato
disse) foi uma ironia ao texto açucarado e machista de Hugo. Não
peço desculpas porque injúria não houve, e sim, defesa
das mulheres. Para mim, uma só mulher pensa mais e melhor do que uma
centena de homens. E mais: não só pensa mais e melhor, como age
também melhor.
Por que se lia (e ainda hoje se lê) tão pouco as mulheres?
Se alguém acaso tiver chegado até aqui na leitura deste texto,
tenho certeza do que já estará a questionar: "Como ler autoras
clássicas se estas não existiam?" Pois é exatamente
aí onde a minha vergonha se transforma em indignação. Com
efeito, no meu tempo de estudante, pelo menos que eu soubesse, não existiam
mesmo escritoras, nem clássicas nem de qualquer outro gênero. Só
que esta constatação deveria, não indignar, mas sim, envergonhar
mesmo, não somente a mim como a todos os outros homens. Não existiam
mulheres escritoras pelo mesmo motivo de que até hoje ainda não
existem, com raríssimas exceções, mulheres estadistas e
diplomatas. Não existiam mulheres escritoras até bem pouco tempo
atrás como também não existiam executivas, políticas,
engenheiras, médicas, juízas, advogadas. Não havia mulheres
escritoras porque os homens sabiam que se as deixassem, não apenas escrever,
mas exercer quaisquer outras das funções que eles mesmos reservaram
só para eles, seriam logo superados por elas, como parece estar a acontecer
agora. Por mais absurdo que possa parecer, não existiam sequer mulheres
eleitoras, pois elas não eram consideradas seres humanos, mas quase animais
domésticos. Até hoje as escritoras são menos lidas do que
os escritores. Quem duvidar, basta conferir numa lista dos livros mais vendidos
de qualquer revista semanal.
Todavia, neste aspecto a nossa geração é, até certo
ponto, privilegiada, pois foi durante meados do século XX que teve início
a verdadeira independência feminina. Felizmente, hoje em dia não
constitui nenhuma surpresa encontrar-se mulheres competindo lado a lado com
os homens e tudo indica que o seu desempenho vem sendo muito além do
esperado. São muitos os exemplos. Recentemente, a senadora Heloísa
Helena foi a única e corajosa voz a manter a coerência quando a
maioria do seu partido deu sinais de se desvirtuar dos propósitos para
os quais teria sido criado. A Professora Marilena Chauí, a líder
feminista Ruth Escobar, a ministra Marina Silva, são apenas alguns exemplos
do potencial intelectual feminino. Para não falar de milhares de mulheres
executivas, médicas, juízas e pesquisadoras de destaque. Na literatura
sobressaem Rose Marie Muraro, Lígia Fagundes Teles, Nelida Piñon,
Marina Colassanti e tantas outras cujos nomes não me ocorrem no momento.