A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Os Carnavais do Açúcar

(Raymundo Silveira)

Os melhores carnavais de que me lembro passeio-os na Serra do Baturité, nos sítios dos filhos do meu bisavô paterno de nome Honorato Gomes da Silveira a quem não conheci, não disponho de nenhuma documentação a seu respeito, mas pela tradição de boca a boca sei que era um dono de engenho de açúcar emigrado à força do Rio Grande do Norte por motivos políticos e outros de natureza mais grave. Ouvi rumores, murmurados por alguns tios e tias, netos dele, que teria homiziado Lampião e seus cabras na sua casa de engenho, em diversas ocasiões, e assim se tornado vítima de perseguição por parte dos homens do poder, seus adversários, sendo obrigado a vir se refugiar, acompanhado pelos seus familiares e jagunços, em terras cearenses. Talvez muito dessa história não passe de lenda, mas que ele veio do Estado potiguar e comprou muitas terras, engenhos, casas grandes e senzalas entre a Redenção e o Pacoti, é a mais pura verdade porque eu mesmo sou testemunha da herança que deixou para os filhos, entre estes meu avô.

Dos meus bisavós paternos descende uma imensa prole e por este motivo aquilo que na sua época era um enorme latifúndio sustentado por um regime ainda com laivos escravocratas e feudais, à custa da monocultura da cana de açúcar, encontra-se hoje em dia pulverizado entre centenas de parentes distantes e adventícios. A fortuna, a fama e a valentia do coronel Honorato eram lendárias; uma das minhas tias contava que certa feita viajou para o sertão da Aracoiaba e conheceu por lá um preto velho na casa onde se hospedou. Conversa vai, conversa vem, “dona se mal pregunto adonde a sinhora mora?”. “Sou da Serra do Baturité, por quê?” “Da Serra do Baturité? Então a sinhora deve ter ouvido falar muito no coronel Honorato Gomes da Silveira”. “Não só ouvi falar, como conheci e conheço todos os seus filhos e filhas, morei na casa onde ele morou que ficava muito próxima do morro ”Cabeça do Honorato”, o ponto mais alto da Serra, cujas terras eram quase todas dele, e muitas coisas mais eu também sei, mesmo porque sou sua neta”. “O quê, dona? A senhora é neta do coronel Honorato Gomes da Silveira? Dona, meu pai era jagunço dele e dizia que o Coronel Honorato tinha mais poder do que o presidente do Estado, Franco Rabelo, pois apesar de ser marreta e, portanto contra o governo, o coronel Honorato só num fazia chover, mas trovejava e o tempo ficava todo nublado”.

A cerca de três quilômetros da vila iniciava-se a ladeira e, com ela, as terras dos meus antepassados, margeadas constantemente por um mar de canaviais que se estendia até se perder de vista no horizonte. Aquele caminho já foi uma estrada de terra batida, pois me lembro muito bem da sua inauguração quando eu era ainda bastante criança, porém não foi conservada e, na época de que estou tratando, tudo se resumia a veredas. Não havia o menor indício de infra-estrutura urbana tais como luz elétrica, comunicações, saneamento. Tratava-se, portanto, de uma área imensa de terras com características absolutamente rurais nos mesmos moldes das do Nordeste do século XIX. A população era constituída exclusivamente de parentes – descendentes do coronel -, pois resultava de um cruzamento endogâmico compulsório. A palavra compulsório entra aqui para significar ausência de alternativas, ou seja, os nubentes eram sempre parentes uns dos outros não porque fossem obrigados a se casarem entre si por quem quer que seja, mas em virtude de não conhecerem outra pessoa fora do círculo familiar. Às vezes chego a desconfiar inclusive de incesto “inocente”, pois já presenciei casamentos até entre primos carnais. Ainda hoje em dia (2004), a maioria dos habitantes daquela região é constituída de pessoas originárias da mesma família-tronco. Cada herdade era provida, entre outras benfeitorias, de um engenho de açúcar, um açude, uma casa senhorial e outras construções satélites, estas últimas, sem nenhuma dúvida, vestígios muito remotos de “Casas Grandes” e de “Senzalas” pertencentes ao meu bisavô.

Pois foi ali onde passei os melhores carnavais da minha vida. A cada noite de folia uma “Casa Grande” diferente se transformava numa espécie de clube recreativo onde não somente a moçada, mas também a velharada, se divertiam das dez da noite até o romper d’aurora. As “Casas Grandes” não diferiam muito daquelas tão bem descritas através das letras elegantes e detalhadas do mestre Gilberto Freire em seu celebérrimo cartapácio. A iluminação era gerada à custa das famosas petromaxes, espécies de lampiões a querosene e providas de camisas incandescentes. Os músicos se resumiam a um sanfoneiro acompanhado por outros tocadores de instrumentos de percussão e por um ou mais “crooners” que quase sempre eram substituídos por adeptos do “karaokê” dos anos 1959-1960, cujo membro mais assíduo era o meu primo Luís Carlos e cuja voz de barítono estou “escutando” neste exato momento: “Ei, você aí / Me dá um dinheiro aí, / Me dá um dinheiro aí”. Ou, “Ca, ca, careco / Cacareco é o maior, / ca, ca, careco / Cacareco, de mim ninguém tem dó”. Podem acreditar: mesmo assessorados por essa infraestrurura tão precária, os organizadores caipiras daqueles “bailes a fantasia” quase medievos conseguiam a façanha de arrancar mais alegria daqueles primos e primas, durante os carnavais, do que os desfiles das Escolas de Samba na Marquês de Sapucaí.

(20/02/2004)

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