A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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O "Dia De Mim"

(Raymundo Silveira)

Hoje encontrei uma escrevinhação de uma pessoa amiga sugerindo que deveria ser criado “O Dia De Mim”. Achei uma idéia original e mais do que oportuna, mas somente da ótica psicossocial, da semântica e da sintaxe; mas não do ponto de vista estético. Preferiria que houvesse o “Dia Do EU”. Jamais “Dia De Mim”. Nunca gostei deste terrível pronome, sempre preferi EU a mim. “Eu” é mais bacana, mais importante, mais charmoso, mais, elegante, mais tudo. Mais EU. Mas “dia de mim”? O que diabo é mim? Pra começo de conversa este monossílabo é uma forma oblíqua de “Eu”. Já imaginaram o oblíquo de alguma coisa? Logo “Eu” que odeio tudo o que é oblíquo. Vejam só o que este adjetivo esconde. Quando uma pessoa olha para você de modo oblíquo é porque tem medo de lhe encarar frente a frente; geralmente tem algo a esconder. Dizem alguns psicólogos que é o primeiro sinal de personalidade mal estruturada, complexada, doentia. Vejam o que o “Aurélio” diz de um indivíduo oblíquo: “Malicioso; dissimulado, ardiloso; sinuoso; e mais: pessoa de conduta oblíqua; atitudes oblíquas”, comportamento oblíquo. Quem acaso não se sentiria mal sendo caracterizado através de tão pejorativas palavras? Quem quer ser (embora seja, de fato), dissimulado, ardiloso, malicioso? EU não queria ser oblíquo nem que me dissessem que ganharia no milhar do jogo do bicho. Você, leitor, acaso almejaria ser oblíquo? Você gostaria de ser portador de conduta oblíqua; atitudes oblíquas, comportamento oblíquo, procedimento oblíquo? Jamais de la vie, nes pas?. Pois EU também, não.

Deus me livre de “Dia de Mim”! E a eufonia? Repitam várias vezes: “dia de mim, dia de mim, dia de mim”. Parece a fala de um débil mental. Já “Dia do EU” é outra história. O EU é o tudo; é o âmago da minha personalidade. É o EGO. É mais do que o Ego: é o Ego sum qui sum. O que esta frase latina lhe sugere, caro leitor? Muito mais do que aquele verso do Augusto dos Anjos, que, por si só já é um must. Vejam só: “É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum, / É a morte, é esse danado número Um / Que matou Cristo e que matou Tibério!” Existiriam na poesia universal versos mais geniais do que estes?

O “Ego sum qui sum” foi citado pela primeira vez no livro do Êxodus, capítulo 3, 14. Desde então, todas as pessoas que são ou querem ser importantes costumam repetir este versículo da Bíblia. Primeiro porque quem fala qualquer coisa em Latim é culto, é erudito, sabe dizer as coisas. Depois porque é elegante. Nunca vi alguém citar uma frase latina – mesmo que esteja errada – que fosse contestado. A maioria das pessoas não sabe Latim, logo, quando alguma delas diz qualquer bobagem nesta língua, esta é aceita sem nenhuma contestação. Já vi uma discussão acalorada onde um dos interlocutores falou estas palavras fero fers tuli latum ferre - que nada mais são do que o indicativo presente, o pretérito perfeito e o infinitivo de um verbo latino o qual significa “tirar para fora, levar a público”. Pois o seu oponente se calou de imediato. E muitos imbecis ficaram achando que o fulano seria um gênio, pois acabara de citar em latim aquele chavão idiota: “quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Imagine estes mesmos imbecis ouvindo qualquer pé-de-chinelo arrotando “Ego Sum Qui Sum”.

Portanto, se alguém quiser criar o “Dia de Si Próprio” o que, aliás, é um gesto mais do que justo: é nobre, é necessário, é conveniente, é um enorme benefício que faz pela humanidade, mas não gostar de “Dia Do Eu” – sugerido no primeiro parágrafo desta escrevinhação -, que pelo menos proponha à ONU a criação do “Dia Do Ego”. Pois “Dia De Mim” é de lascar! Não acham?

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