A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Uma Obviedade Que Poucos Percebem

(Raymundo Silveira)

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
".
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos): Tabacaria

Estes versos de Pessoa simbolizam, em poucas palavras, toda a angústia existencial dos homens. E com justa razão, pois não somos mesmo nada; pelo menos enquanto indivíduos. Mas insistimos em ir de encontro - e a não nos resignarmos - a esta evidência tão cristalina. Desde a origem da vida - tenha sido ela casual, aleatória, ou planejada -, nunca houve qualquer intenção de atender aos apelos, necessidades e desejos individuais. Ninguém pode negar a existência de uma proteção da natureza para com os seres vivos, mas este cuidado visa sempre ao coletivo, nunca ao indivíduo. É assim com uma cepa viral, é assim com uma colônia de bactérias, com um formigueiro, com um bando de pássaros e com uma sociedade de chimpanzés. Então, por que seria diferente com a raça humana?

Todas as religiões existentes foram criadas a fim de aplacar esta angústia que, aliás, é específica dos seres humanos, e parece ser o alto preço que pagamos por possuirmos uma consciência. Esta tentativa de defesa contra o nosso inexorável destino é geradora de conflitos emocionais e de outras inadequações típicas da espécie. A relação prejuízo/benefício resulta sempre em detrimento do segundo fator. Se, por um lado, a voz do Papa clama no deserto contra a violência, é também em nome da religião que muitos homens se matam. Se todos os seres humanos tivessem sido condicionados, desde a pré-história, a reconhecer que nada somos mesmo - como diz Pessoa - enquanto indivíduos, mas que somos muito importantes, enquanto espécie, as angústias existenciais teriam sido extintas logo no nascedouro. Por outro lado, isto acarretaria menor competição e, conseqüentemente, não existiriam guerras, assaltos, homicídios, numa palavra, violência. Ou pelo menos esta seria quase insignificante comparada com aquilo que, de fato, sucede. A tentativa de se implantar o socialismo foi a primeira experiência frustrada no sentido de se reverter este quadro. E quem a sufocou foi exatamente o instinto individualista que preconizava - e ainda preconiza - a hegemonia da lei do mais forte. Existe uma tendência evidente para agirmos com egoísmo, enquanto estamos numa boa e de reivindicarmos solidariedade quando os revezes da vida, eventualmente, preferem a nós mesmos.

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