A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Um Menino Levado

(Raymundo Silveira)

Há cerca de dois anos adotei um menino branco. A princípio me questionei se estaria incorrendo num preconceito racial, mas logo tentei afastar esta idéia. Gostei do menino branco porque gostei. Não iria, portanto, renunciar a ele somente pelo escrúpulo de ser tachado de racista. A prova de que não sou racista é que já havia adotado outro menino escurinho que, infelizmente, foi acidentado e morreu. A princípio, este outro menino não me deu muito trabalho, pois era bastante acomodado. Hoje, todavia, devo tomar alguma providência, pois ele não me deixa mais escrever sossegado, comer minhas refeições tranqüilamente como exijo, tomar banho, escovar os dentes, e nem está mais me deixando sequer dormir. Fecho a porta do quarto, mas ele fica batendo e chorando até que eu a abra.

Agora mesmo, enquanto estou teclando neste computador, ele está a exigir atenção, afagos e carinho. Não me recuso a dar, mas há de ter um limite. Se fosse fazer tudo o que ele deseja não teria mais tempo para responder a um único e-mail. O problema está ficando cada vez mais complicado e o que o torna assim, é que gosto muito dele e ele parece também gostar bastante de mim. A cada dia o diabinho fica mais levado e agora deu para tentar destruir os móveis da casa. Um comportamento dele que acho por demais estranho, é que adora ser afagado, mas detesta ser abraçado e beijado. Onde já se viu isto? Quando gosto de alguém gosto de ser acariciado, mas também adoro receber carinhos. O pestinha, não. Só quer "venha a nós"; "ao vosso reino", nada.

Noutro dia andou a fazer cocô misturado com sangue e, como ele não tem Unimed, tive de pagar consulta particular. Ainda bem que o doutor acertou logo com o diagnóstico e o tratamento o pôs bom logo, além de ter custado quase nada. A alimentação dele também é diferenciada; não pode ser a mesma das pessoas da casa. Às vezes quando esqueço de comprar a sua comida, tenho de apanhar o carro e voltar para o supermercado apenas por causa disto.

Muitas pessoas acham estranho porque o "batizei" com este nome. Onde já se viu pôr o nome de "menino" em alguém? "E quando ele se tornar adulto, ainda continuará a ser chamado de 'menino'?" É o que costumam me perguntar. Não sei, mas parece que este não apenas "pegou" como também ele não teria gostado nada se o chamassem por outro nome. Quando pronuncio a palavra "menino", ele deixa tudo o que está a fazer e vem correndo. Quando o meu outro menino caiu do meu sétimo andar, sofri demais, por isto, desde o dia em que adotei este outro, mandei pôr tela em cada janela do apartamento.

Neste instante, o danado está a bater à porta mais uma vez. Pronto! Abri-a. Passou a tocar minha perna com a mão, a pedir afago. Tive de interromper, por alguns minutos, esta escrevinhação. O que é que eu faço com este gatinho persa, meu Deus?

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